Na passada semana ouvimos Henry Kissinger, cuja credibilidade na matéria das relações internacionais é indiscutível, dizer que espera que os Ucranianos “correspondam ao heroísmo que demonstraram com o mesmo nível de sabedoria”. Cada vez mais ouvimos grandes cabeças a partilharem este sentimento, à medida que a guerra se prolonga e o inverno se aproxima, é expectável que estas vozes venham a aumentar. Nas democracias liberais reina a opinião pública e essa com o desenrolar do conflito poderá alterar-se.

As últimas semanas têm trazido avanços significativos russos na Ucrânia, particularmente no leste do país, ao mesmo tempo que o rublo indica estar a recuperar face à montanha de sanções que foram impostas ao regime desde o início do conflito. A grande justificação para a reviravolta do rublo deve-se à decisão de Putin de apenas vender gás russo com o pagamento feito na moeda do seu país. A Polónia foi um dos poucos países da União Europeia a ter tido a coragem de recusar ceder a esta exigência e consequentemente foi-lhe fechada a “torneira” de gás russo.

Importa, ainda, referir que a posição de Kissinger, inteiramente coerente com o realismo que sempre demonstrou ao longo da sua carreira, não é de todo uma novidade desde o início do conflito. Em pouco difere da posição de outros realistas como John Mearsheimer e também não diverge assim tanto das posições de partidos políticos no Ocidente que foram apelidados de “idiotas úteis” para Putin. No fundo, esta visão pode ser representada por uma única frase: Se a guerra continuar, os ucranianos vão ser destruídos pelo poderio russo, e portanto, como modo a se conservar a Ucrânia deve dar à Rússia tudo aquilo que a Rússia quer, incluindo uma grande parte do seu território.

Em primeiro lugar, há que dizer que a decisão de lutar ou não depende apenas e só do povo ucraniano, que é o único que está a lutar contra a agressão do regime pela sua liberdade e integridade. Para a Ucrânia isto não é apenas um jogo de risco tático para ver quem fica com o quê, isto é uma luta pela sua própria existência, com a velocidade a que a informação e os ciclos de imprensa se movem nos dias de hoje, poderemos até ter memória curta sobre o que aconteceu em cidades como Bucha, contudo os ucranianos nunca se hão de esquecer de tais acontecimentos. A Ucrânia está a ser vítima de um massacre e o seu único “crime” foi querer ser uma democracia liberal mais próxima do cosmopolitismo Europeu do que do autoritarismo russo.

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A quebra nas exportações de trigo à custa do conflito pode gerar uma fome mundial no futuro próximo, de acordo com o Programa Mundial da Alimentação da ONU; e com o inverno a chegar, com a Europa assumidamente (e bem) a querer largar a sua dependência energética de Putin, existe o risco grande, como já nos alertaram, em Portugal, Paulo Portas e José Miguel Júdice, de o tirano russo fechar a torneira completamente e provocar milhões de mortes pela Europa fora. Putin usará essa arma antes da Europa alcançar a independência energética da Rússia e não depois. Ora, ainda não estamos em conflito direto com a Rússia, mas atendendo a estes cenários será que esta realidade se vai alterar?

Apesar deste cenário negro, há uma base no coração da teoria de realistas como Kissinger ou Mearsheimer que não tem, ou não deve ter, um fundamento forte: mesmo num cenário em que a Ucrânia aceite negociar, entregando uma fatia da sua geografia em troca do fim das hostilidades, esta teoria realista assenta no pressuposto que em tal cenário, o Ocidente levante todas, ou algumas, sanções ao regime de Putin. Ora, se esse fosse o caminho a seguir, seria um gigante erro. Nunca Putin poderá recuperar a sua credibilidade aos olhos dos países que compõem o Ocidente.

Não prestamos atenção quando a Rússia anexou a Tchetchénia, ou quando atacou a Geórgia; quisemos ignorar o discurso de Munich de Putin em 2008 quando este declarou o regresso da Guerra Fria com o intuito de destruir o liberalismo internacional; fomos fracos com a Rússia quando anexou a Crimeia; desconsiderámos quando hackers russos infiltraram as nossas democracias e quando inimigos do regime russo foram envenenados nos nossos territórios. A Europa deixou-se levar pelo dinheiro de oligarcas e por gás a um preço mais acessível ao ponto de ficarmos com uma dependência que coloca agora milhões de pessoas em risco quando o inverno chegar. Em coletivo fechámos os olhos e agora os ucranianos pagam o preço.

Não podemos de maneira nenhuma voltar a repetir os mesmos erros, mesmo num cenário em que a Ucrânia e a Rússia cheguem a um acordo de paz, Putin não deverá ter tréguas. As sanções são para ficar enquanto o KGB se mantiver como poder único na Rússia, deve ser condenado ao isolamento internacional. O desafio difícil que se coloca à Europa como forma de apoiar a Ucrânia é o de chegar com urgência à independência energética da Rússia antes do inverno, ou seja, de parar de uma vez por todas de financiar a máquina de guerra de Putin. A Alemanha ainda paga 200 milhões de euros de gás russo por dia. De nada vale condenar inequivocamente a invasão russa se até ao dia de hoje a continuamos a financiar.

Os nossos esforços diplomáticos não deviam concentrar-se em convencer a Ucrânia a ceder território à Rússia, mas em persuadir a Hungria a deixar de vetar os embargos ao petróleo e ao carvão que a Comissão Europeia quer impor e que não está a conseguir. O foco não deveria estar em procurar levantar sanções que obviamente também nos impactam a nós, mas em assistir a Alemanha com alternativas de energia para que esta se possa empenhar mais em desistir também do gás russo.

Não é a Ucrânia que tem de mostrar sabedoria que equivale ao nível do seu heroísmo, somos nós. Em 2008, quase duas décadas depois da queda da União Soviética, Vladimir Putin declarou em Munich uma guerra fria ao Ocidente. Saibamos agora, em 2022, depois de toda a destruição a que temos assistido desde há três meses, independentemente de como a guerra na Ucrânia se desenrolar, responder com a mesma moeda; e que essa moeda não seja o rublo, de preferência.