A decisão do governo turco de passar a destinar ao culto muçulmano aquela que durante séculos foi basílica de Santa Sofia encerra uma elevada carga simbólica. Podemos dizer que vem reacender aquilo que muitos temem: o conflito de civilizações. Este conflito não deve confundir-se com um conflito de religiões, embora estas desempenhem papel da máxima relevância na identidade das civilizações. É notório que a motivação de Erdogan é, acima de tudo, de afirmação política (como foi dito a propósito, os crentes muçulmanos turcos não precisam de mais um espaço de culto), num contexto em que tal gesto vem, estrategicamente, reforçar uma popularidade em queda por vários motivos. Neste caso, como noutros a Oriente e a Ocidente, em contextos de tradição islâmica ou cristã, a religião é instrumentalizada em função de propósitos políticos que também podem inserir-se numa lógica de conflito de civilizações.

A decisão é tomada com a evocação da conquista que, há mais de seiscentos anos, transformou a antiga basílica em mesquita. A lógica da conquista que dominou as relações entre muçulmanos e cristãos, e que transformou igrejas em mesquitas e vice-versa, é, assim, desenterrada. Para justificar tal decisão, alegou também o governo turco o exemplo da catedral de Córdova, mesquita até à conquista cristã da cidade, cuja afetação ao culto cristão também é por alguns contestada. Uma tal decisão representaria, porém, o apagamento de séculos de história, para além de que originaria conflitos sem fim. Seria tão absurda como a pretensão de afetar ao culto cristão a mesquita de Damasco, construída no lugar de uma antiga igreja dedicada a São João Batista. E a mesquita de Córdova também substituiu uma mais antiga basílica dedicada a São Vicente mártir….

Para que não se reacenda o conflito de civilizações, há que evitar desenterrar este tipo de conflitos. Mas é isso que se verifica com a decisão do governo turco. A situação vigente desde que Kemal Ataturk destinou a museu o edifício da antiga basílica de Santa Sofia que depois transformada em mesquita, tem permitido preservar, simultaneamente, o seu significado histórico para cristãos e muçulmanos. Não será assim daqui para o futuro, pelo menos do mesmo modo.

A basílica de Santa Sofia foi construída pelo imperador romano do Oriente Justiniano em 536. Foi sede do Patriarcado de Constantinopla (a partir do século XII separado de Roma) e pode ser equiparada à Basílica de São Pedro como sede da Igreja Católica. Nela se realizaram importantes concílios ecuménicos. Nela foram coroados imperadores. Foi durante muito tempo a maior igreja do mundo. Contém ainda hoje mosaicos que são obras-primas da arte bizantina e que a conquista pelo sultão Mehemed II e sua transformação em mesquita, em 1453, não destruiu por completo. É este significado que a situação atual tem preservado, sem ignorar o significado que também tem para os muçulmanos, que no mesmo edifício rezaram durante mais de quatro séculos e nele também deixaram marcas da sua fé.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Podemos dizer que este museu e antiga basílica e mesquita tem representado um símbolo dos auspícios de harmoniosa convivência entre cristãos e muçulmanos e um símbolo da Turquia com uma dupla herança e ponte entre Ocidente e Oriente. A propósito, hoje parecem quase esquecidos os tempos em que a Turquia apresentou a sua candidatura à União Europeia. Foi, na altura, discutida a sua ligação à cultura europeia e, para sublinhar essa ligação, poderia ser invocada o papel do legado bizantino nessa cultura, designadamente através da história da Igreja, de que a basílica de Santa Sofia (local de realização de concílios ecuménicos importantes para essa história) representa um sinal eloquente. As opções políticas do governo turco entretanto tomadas afastam cada vez mais essa pretensão de ligação à Europa e à sua cultura, afastamento que culmina nesta decisão de anular esse papel simbólico do edifício da antiga basílica de Santa Sofia.

Para preservar esse significado para cristãos e muçulmanos, foi sugerido que o edifício passasse a acolher tanto o culto muçulmano, como o culto cristão. Afirmou o Patriarca de Constantinopla dos arménios (da mais numerosa comunidade cristã da Turquia) que desse modo seria até mais fielmente respeitado tal significado, como local de culto que sempre foi até 1934 (quando foi transformado em museu), mais do que como local de atração turística. Essa sugestão também foi formulada pelo presidente da comunidade muçulmana austríaca. Na verdade, seria talvez a fórmula ideal, que, porém, encontraria dificuldades práticas de uma aplicação que evitasse também os riscos de um sinal de sincretismo religioso.

A decisão do governo turco suscitou reacções de oposição, sobretudo da parte de representantes do mundo cristão ortodoxo, como o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu II, e o Patriarca de Moscovo, Kirill. O Papa Francisco afirmou a sua dor perante a decisão, na oração do Angelus de 12 de julho. Também alguns responsáveis muçulmanos (como alguns imãs italianos) a criticaram. Foram vários os governos (da Rússia, da Grécia, dos Estados Unidos) que manifestaram a sua oposição.

O Conselho das Igrejas do Médio Oriente (que reúne comunidades de várias denominações cristãs dessa área) salientou como esta decisão contraria o caminho que vem sendo percorrido no diálogo entre cristãos e muçulmanos e que tem uma sua etapa importante no Documento sobre a Fraternidade em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, assinado pelo Papa Francisco e pela máxima autoridade do Islão sunita, o Grande Imã da universidade Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi, a 4 de fevereiro de 2019. Um documento e um programa que ambas as partes estão empenhadas em promover e implementar.

Na verdade, a globalização e as migrações tornam incontornável a importância do diálogo entre cristão e muçulmanos, as duas religiões com maior número de crentes (pelo menos nominalmente) no mundo.

A propósito do conflito de civilizações, será oportuno citar o que afirma a Declaração de Abu Dhabi quanto ao relacionamento entre o Ocidente e o Oriente:

«O relacionamento entre Ocidente e Oriente é uma necessidade mútua indiscutível, que não pode ser comutada nem transcurada, para que ambos se possam enriquecer mutuamente com a civilização do outro através da troca e do diálogo das culturas. O Ocidente poderia encontrar na civilização do Oriente remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental; e é importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para ajudar a garantir uma vida digna para todos os homens no Oriente e no Ocidente, evitando o uso da política de duas medidas.»

As culturas do Ocidente e do Oriente, assim como as de tradição cristã e muçulmana, não têm, pois, que entrar em conflito, podem enriquecer-se mutuamente. Esta Declaração é uma eloquente resposta à tese da inevitabilidade do conflito de civilizações. Mostra que a história conflitual do passado não tem necessariamente de repetir-se no futuro. E é também uma eloquente resposta à tese de que as religiões são necessariamente um fator de divisão, conflito e até violência. Que tenha sido assim em muitas ocasiões, por terem sido incorretamente interpretadas ou por terem sido abusivamente instrumentalizadas para fins que lhes são alheios, não significa que tenha de ser necessariamente assim.

A decisão do governo turco de passar a destinar ao culto muçulmano aquela que durante séculos foi basílica de Santa Sofia, ao contribuir para reacender o conflito de civilizações, contraria, pois, como salientou o Conselho das Igrejas do Médio Oriente, o espírito de diálogo e colaboração que presidiu à Declaração de Abu Dhabi.