Até a mim me dói ver a linha de baixo, como que esmagada pela de cima. Olho para a versão noturna, toda em néon festivo, e sinto constrangimento. Vejo a versão diurna da nova designação do Palácio de Cristal, no Porto, exposta à luz do dia, e sinto um embaraço ainda maior. Uma espécie de vergonha alheia, pois estamos a falar de duas marcas, mas uma delas mais duradoura do que a outra. Porventura indelével.

Uma vive do produto que vende e do lucro que gera, enquanto gerar. A outra vive de feitos extraordinários e conquistas olímpicas, que não se transacionam. As medalhas de ouro nem sequer são joias, porque essas compram-se e vendem-se. As medalhas de ouro, tal como as homenagens, conquistam-se por mérito. Ponto.

Percebo muito bem Rosa Mota, que ontem se recusou a participar na cerimónia de reabertura do espaço multiusos recriado no ‘seu’ pavilhão. Um edifício que, mesmo não tendo, até aqui, o seu nome inscrito na fachada era, para todos, inequívoca e justamente o Pavilhão Rosa Mota. A homenagem foi-lhe feita em 1988 e, desde então, passou a ser também essa a sua designação. Aparentemente há muito boa gente que não percebe os argumentos, a ética e a sensibilidade da ex-atleta e, por isso, não lhe faltarão haters a tentar provar que os tempos mudam, que as coisas já não são o que eram e que está certo minimizar o seu nome, para maximizar o nome da marca patrocinadora das obras. Não está certo e não é um detalhe menor, mas sim uma questão maior, de honra, de mérito, de marca pessoal e identidade nacional.

Felizmente a estatura moral de Rosa Mota ultrapassa, e muito, o seu tamanho físico e há-de estar, como sempre esteve nas pistas, à altura de contornar obstáculos, gerir ventos contrários e resistir às adversidades. É, como todos sabemos, uma mulher com uma resiliência histórica. Épica. Olímpica.

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Faz-me todo o sentido que tenha começado por não querer ver o seu nome associado a bebidas alcoólicas e louvo-a por isso. Todos sabemos o poder que as grandes marcas de bebidas alcoólicas exercem sobre pessoas de todas as idades e condições, mas ninguém minimamente informado pode ignorar os efeitos perversos dos elevados consumos de álcool nas novas gerações, para falar apenas das estatísticas mais alarmantes. Não só por isto, mas também por isto, deixar que o nome próprio fique para sempre associado à produção, venda e consumo de bebidas alcoólicas não é fácil nem inócuo para alguém com o perfil e a marca de Rosa Mota.

Por outro lado, também sou sensível à sua sensibilidade, quando admitiu que essa associação fosse possível porque Rui Moreira, o atual Presidente da Câmara do Porto, lhe falou à razão, apelando à sua compreensão para a necessidade de obras pagas pela marca. Rosa Mota nunca quis prejudicar a sua cidade, muito pelo contrário! e, perante argumentos como os que lhe foram apresentados, aceitou que o seu nome fosse colocado antes do patrocinador. Acredito que não o fez por vaidade, mas por devoção à sua cidade e para não se perder o sentido nem o valor da homenagem que lhe foi prestada por Fernando Cabral, o autarca que em boa hora, e no auge das proezas que valorizaram Portugal, a homenageou. Nada pior nem mais daninho do que a inclinação à desvalorização pessoal ou à auto depreciação. Ainda bem que Rosa Mota não sofre deste mal nacional.

Nesta lógica continua a fazer-me sentido que graficamente existisse uma solução de compromisso, em que Rosa Mota veria o seu nome colocado no pavilhão, imediatamente antes do nome do patrocinador das obras. Ou, no mínimo, em plano de igualdade. Ora acontece que a tentação de fazer brilhar o dinheiro é tão grande que não só alteraram a designação, enganando redondamente Rosa Mota, como encolheram o tamanho das letras a um tal ponto que aparece como sub-título, na linha de baixo.

Da Super Bock, que é uma marca poderosa e conhecida, esperava que viesse o digno reconhecimento de uma outra marca, igualmente forte. Isto, porque Rosa Mota há muito deixou de ser apenas um nome. Rosa Mota é uma marca. Mais: é uma marca potente, influente, que se confunde com a identidade nacional e nos elevou sempre acima das nossas circunstâncias, fossem elas quais fossem. Nas madrugadas em que fazia maratonas olímpicas, nos dias em que a acompanhávamos à distância, pela televisão, e nos momentos em que subia ao pódio e o hino nacional fazia eco no mundo inteiro, todos nos sentimos incrivelmente orgulhosos, invencíveis e poderosos.

Fico contente por haver pessoas como a Rosa Mota, que não se deixam impressionar pelo dinheiro e conhecem bem o seu valor. Pessoas que não se vendem e muito menos saem à praça para regatear preços. Pessoas que preferem que a homenagem lhe seja retirada do que vê-la ser desvalorizada.

Não sei se Rosa Mota vai conseguir que retirem o seu nome do grande anel do edifício, mas concordo inteiramente com ela nesse pedido e junto a minha voz à sua, na esperança de que Rui Moreira também me ouça. Sem letras absolutamente nenhumas penduradas na fachada, este foi durante três décadas o Pavilhão Rosa Mota. Nunca ninguém se esqueceu da homenagem prestada e aposto que nunca será esquecida.

Já quanto à Super Bock, acredito que seja uma marca que ainda precisa de uma assinatura garrafal a toda a largura para se ver bem quem tem o dinheiro e o poder.

Teria sido bonito ver a marca Super Bock celebrar a marca Rosa Mota, mas infelizmente não aconteceu. Não só não a valorizaram, como a tentaram apagar. E eu pergunto como é que se apaga uma marca que está inscrita, tatuada no coração e na memória dos portugueses que têm memória e coração.