Têm vindo a público uma série de situações que dão conta de incompatibilidades e/ou situações que fazem suspeitar de favorecimento ilícito de familiares ou dos próprios titulares de cargos políticos. São casos que demonstram como não há regras nem legislação que possam substituir o bom senso e a ética, dois valores que nunca poderão ser cobertos por regulamentos ou legislação.

O falso moralismo é uma praga que, a pouco e pouco, tem vindo a ocupar o espaço mediático. Os chamados populismos usam e abusam destes casos para espalharem as suas mensagens que aparentam ser quimicamente puras, garante de maior transparência e do fim da corrupção. O facto é que o que este ambiente criou na nossa sociedade foi uma ainda maior confusão, em que tudo é metido no mesmo saco, confundindo-se situações que não são graves com situações que são gravíssimas.

É verdade que há muito amiguismo e compadrio nas instituições do Estado que se confundem cada vez mais com o Partido Socialista que governa o país há tempo demais. Também é verdade que há imprevidência e mesmo falta de noção de grande parte dos nossos governantes sobre as fronteiras entre o interesse público e o interesse pessoal. Começa com o Primeiro-ministro, que acha que pode chamar os seus amigos para prestarem consultoria ao Estado aparentemente de borla e sem qualquer vínculo contratual. Passa pelos laços familiares à mesa do Conselho de Ministros e dentro dos gabinetes ministeriais. E acaba em nomeações estapafúrdias e à margem das regras.

De facto, não têm faltado motivos para ficarmos desconfiados e irritados a cada notícia que surge. Mas, a bem da saúde da nossa já frágil democracia, é cada vez mais importante sabermos distinguir o trigo do joio e não exigir para uns regras consideradas impensáveis para outros.

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Onde quero chegar é à diferença evidente entre casos. Há dinheiro público entregue de forma irregular e fraudulenta a gente do aparelho socialista (caso das golas de fumo) ou a empresas fictícias criadas de propósito para aceder a essas verbas (caso da contratação por ajuste direto a uma empresa criada uma semana antes para reorganizar as urgências da região de Lisboa)? Há. Mas estes casos não podem ser confundidos com situações que envolvem cidadãos portugueses, com a sua vida constituída há muitos anos, como é o caso do marido da ministra Ana Abrunhosa ou do pai do ministro Pedro Nuno Santos, empresários de longa data, que, por sorte ou azar, são também familiares de membros do Governo atual.

É um tema não só português, mas também internacional. Quem viu a célebre série dinamarquesa Borgen, lembra-se do episódio em que o marido da Primeira-ministra foi obrigado a desistir de um cargo numa empresa só porque essa empresa era contratada por outra que tinha relações com o Estado. Uma decisão traumática que acabou com o fim do casamento.

No mundo de hoje, provavelmente a época com maior corrupção da história, há uma nuvem de moralismo que me parece contribuir mais para confundir do que para trazer mais transparência. Visto à lupa, é praticamente impossível a um familiar de um membro de Governo exercer a sua atividade sem ser alvo de críticas e censuras. Por isso, muitas pessoas válidas recusam liminarmente exercer funções públicas. O reverso da medalha é que, cada vez mais, só lá estão os que, sem mérito, têm de encontrar recursos para si e para a família. E ao mesmo tempo o discurso populista coloca mais algum álcool na ferida com a gritaria dos excessivos ordenados dos políticos. Resultado: os lugares sobram para quem não tem nada a perder e só pode pretender ganhar com os benefícios do exercício do poder.

Não me parece que nada disto contribua para uma democracia de qualidade. Concordo com o escrutínio e acho que todas as situações devem ser avaliadas até às últimas consequências. Mas o tiro ao alvo a tudo o que mexe e tratar o que é diferente como se fosse igual só pode dar mau resultado.

Já agora, se é para tratar tudo da mesma forma, não se percebe porque é que durante seis anos se achou normal que o marido da então Ministra da Justiça, Eduardo Paz Ferreira, tivesse continuado a emitir pareceres para o Estado, apenas com a exclusão de temas relacionados com o ministério tutelado pela mulher. Para mim, a resposta é simples: Eduardo Paz Ferreira é um dos maiores e mais reconhecidos juristas portugueses e, portanto, não fazia sentido confundir o trigo com o joio só porque a sua mulher era ministra. Parece-me a leitura correta diante de uma situação concreta. A mesma chave de leitura deve ser aplicada a situações similares.

Acrescento ainda que Portugal é um país pequeno demais e com um número muito restrito de pessoas qualificadas para exercerem funções de governação. A probabilidade de essas pessoas terem relações familiares com outras que exerçam papéis de relevância na nossa sociedade é grande. Por isso, temos mesmo de decidir se queremos ser governados por zés-ninguéns que tornam este país ainda mais insignificante, ou se estamos disponíveis para ter bom senso e favorecer o contributo dos poucos que ainda estão disponíveis para fazer sacrifícios em nome do bem comum.