O SNS está desadequado da realidade, parou no tempo, foi sendo placidamente destruído e está moribundo.

Irrecuperavelmente?

Sim nos moldes em que foi criado e, pelo que temos vindo a assistir, temo que não haja capacidade, competência ou vontade política de fazer diferente.

A matriz do SNS, quando foi construído em 1979, trazia a essência da esperança de “melhoria em saúde” para a Sociedade Portuguesa. Esperança enorme que “vinha de muito longe e andou muito p´rá aqui chegar”. Chegou com entusiasmo, para todos que passariam a ter acesso universal a cuidados de saúde de qualidade.

Para alguns, por poderem concretizar as suas adquiridas e treinadas competências em ambientes adequados à modernidade daqueles tempos, em que tudo se passaria no âmbito das Carreiras Médicas individualmente conquistadas, limpidamente escrutinadas e concretizadas através de abertos Concursos de Provas Públicas em que era avaliado e reconhecido o mérito individual.

Todavia, o desnorte com que foi sendo gerido colocou o SNS nos antípodas da situação que, na transição do milénio e em muitos domínios, não temia comparações qualitativas com os melhores da Europa.

A desadequação, continuadamente agudizada na última década, atingiu o caos que a comunicação social tem vindo diariamente a relatar, justificando o tão disseminado “direito à indignação”.

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Recordando que “risco” e “oportunidade” integram, na milenar sabedoria chinesa, o conceito de “crise”, vemos que a resposta foi clara. Portugal optou pela tranquila contemplação do “risco” que foi conduzindo à falência do SNS.

Poderia Portugal ter olhado para as “oportunidades” e não deixar morrer o SNS? Poderia, se para tanto tivesse havido engenho, arte e vontade política.

É possível, agora, melhorá-lo para recuperar a qualidade? Não! Porque o Mundo e as Sociedades evoluíram e Portugal mudou profundamente na matriz e nas circunstâncias.

Não percebendo a modernidade, o SNS fechou-se sobre si próprio e estagnou. Esqueceu que em Saúde, mantendo-se inalterado o princípio de exigência e qualidade, até a evolução demográfica impõe profundas alterações, exige especiais atenções e impõe exponenciais aumentos de custos.

O poder político não viu a cristalina realidade de que “os meios profissionais são um aspecto a necessitar de mudança, de modo que futuramente o SNS possa responder ao desafio de conseguir manter a motivação dos seus profissionais, bem como conter e inverter a sua saída, bem como, pressões de trabalho e os salários inferiores, que incentivam médicos e enfermeiros a sair do SNS para os privados ou, mesmo, a emigrar para outros países”.

Realidade reforçada pela preocupação de “uma gestão que equacione custos e benefícios e pondere os gastos tendo em vista uma maior eficácia dos recursos”. Bruxelas dixit!

Ao contrário destas visões externas a que importará não dar ouvidos, repete a inteligentzia nacional que o problema está no “despudorado negócio da doença” entendendo que a situação se resolve com “dedicação exclusiva dos profissionais da saúde”.

Exclusividade de quem? Dos resignados que sem espírito de iniciativa se acomodaram por falta de motivação ou competência? Esses não necessitam de exclusivizações porque não terão para onde ir!

A displicência continuou com o não entendimento dos porquês de o afundar do SNS coincidir com o início da prosperidade dos privados. Como não perceber que “qualidade só é vencida por mais qualidade”?

Como não perceber que, ao continuado desgaste dos recursos humanos e estructurais do SNS, os privados responderam com reforço qualitativo de meios, equipamentos e parques tecnológicos?

Como não perceber quão dourada era a bandeja em que o Estado estava a oferecer aos privados o investimento em I&D, nem como a anquilosada gestão pública era presa fácil para políticas de gestão ágeis nos processos, dinâmicas nos métodos e largas na visão?

Importando não branquear a forma como mesterizam o ofício, os factos mostram que os privados mais não fizeram que aproveitar a oferenda do Estado, servida através das mesmas “maçanetas” que, enquanto fechavam as portas de clausura do SNS, escancaravam as dos privados.

Ofereceram a uns o respeito pela dignidade, que o Estado ignora com o despudor pelo que “não cuida”, e a outros projectos profissionais que lhes permitiria competência no “fazer”.

Tal bastou para que, embalados por “umas quantas palavras doces” que lhes restituíam honorabilidade pessoal e profissional, se tivessem deixado encantar.

Quem duvida de que em condições semelhantes – não necessariamente iguais – o SNS “ganharia de longe” a qualquer privado?

A réstia de esperança num SNS eficiente exige ao Estado a capacidade de “ver a realidade” das capacidades instaladas e equacionar medidas, prioridades e estratégias políticas realisticamente responsáveis.

Treslendo o articulado dos textos que vai legislando, o Governo esquece a mudança do significado do acrónimo, em que o primeiro “S” perdeu a “exclusividade de Serviço” e evoluiu para “Sistema” Nacional de Saúde”.

Enfaticamente reclamando “modernidade digital”, o Estado ignora a força da sua “penetrância” na realidade clínica, de que são exemplo maior os exames complementares de diagnóstico. Depois dos muito sofisticados equipamentos tecnológicos e das mais elaboradas técnicas histopatológicas terem scanizado os doentes e obtido as imagens, a leitura interpretativa dos dados é feita em plataformas digitais, onde a globalização impera sem menorização de qualidade e rigor.

Bastará este exemplo para ver como é indispensável “saber olhar para ver” a realidade e integrar qualidade, sobretudo quando os recursos são escassos.

O meu “direito à indignação” advém da altaneira serenidade com que o poder político despreza a saúde como valor maior dos cidadãos e da despudorada desfaçatez como fomenta a (des)informação tentado legitimar a ausência de respostas.

A Lei de Bases da Saúde foi reprovada na AR em 2020 com algumas curiosidades.

Atendendo a que “a troika acabou com a autonomia dos hospitais”, como referiu um destacado elemento do partido que suporta o Governo, a Lei foi considerada “muito ambígua” e mostrou como o “Sistema” ainda é muito incómodo e razão para que alguns dos mais empedernidos e ultraconservadores ideólogos, que insistem em não ver mais que o “estado providência”, tenham reforçado o travão.

O primeiro-ministro reforçou a recusa pela “diferença essencial que tem a ver com o facto de qual deve ser o papel do sector público e de qual deve ser o papel do sector privado no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”. Apesar de dizer pretender “uma definição muito clara”, a verdade é que, na ausência de cabal esclarecimento, o primeiro-ministro não disse ao País a verdade do que fala.

Esqueceu a importância da diferença estructural do “S” e que a “diferença essencial” num Sistema de Saúde não é outra que “motivação, capacidades e competências” postas ao serviço de todos os cidadãos.

Acaso ignora o Governo que a letra da Lei em vigor diz que é objectivo conceptual do Sistema Nacional de Saúde “a ordenação, integrada e hierarquizada de instituições e serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde, de índole pública – contemplando o original SNS –, social ou privada”?

Mas, a que metodologia deve obedecer a “ordenação” das Instituições que se impõe “integrar e hierarquizar”?

Volto à Lei de Bases da Saúde e à Carta Hospitalar Portuguesa nela contida para, assinalando o destaque que lhe é atribuída, assinalar o desprezo com que é politicamente ignorada.

Será inadiável a sua efectivação porque, além da racionalização de equipamentos estructurais que apenas respondem a clientelismos partidários, traria a qualificação certificadora de capacidades e competências da Rede Hospitalar.

Auditorias independentes a todos os Serviços de Saúde, Públicos, Sociais e Privados, tornariam possível “ordenar, integrar e hierarquizar” e, definitivamente, conhecer a qualidade do “que se faz, onde é feito e quem faz”, com que “meios e resultados”, tanto a nível pessoal, como de grupo e Instituição.

Não é um elementar direito de cidadania os portugueses poderem saber onde lhes serão prestados os melhores cuidados de saúde?

Sem receio de desmentidos, afirmo que neste âmbito de Qualidade em Saúde, nada se sabe em Portugal.

Outra “não verdade” elementar é como a ministra da Saúde, secundando o Primeiro Ministro, exibe o “enorme investimento” no SNS, de que destaco os mais de 400 milhões de euros gastos em horas extraordinárias e prestação de serviços – o “cancro do SNS” para Marta Temido – que permitiriam contratar 5.000 médicos com horários de 40 horas semanais.

Alguém duvida de que esta atitude possa ser fruto de irresponsável incompetência política?

Mas nunca se ouviu uma palavra da ministra da Saúde a dizer a verdade de assim fazer porque não tem médicos para contratar?

Paradoxal?

Não, porque todas as boas moedas têm duas faces e ambas são verdadeiras.

Médicos existem, mas uns já estão no SNS e fazem milhões de horas extraordinárias, outros, genericamente reformados, prestando serviços à tarefa, não são contratáveis e muitos outros cansaram-se e foram para o Estrangeiro ou para os Privados.

Sem rebuço de pudicícia, a ministra da Saúde disse no dia 24/11/2021, na Comissão Parlamentar de Saúde, que a solução passa por perceber que “na seleção de profissionais para o SNS há, porventura, outros aspetos como a resiliência que são tão importantes como a sua competência técnica“.

Esqueceu rapidamente quem e porquê Portugal aplaudiu nas ruas na COVID-19!

Interrogo-me se estas “distracções” são meras expressões de desconhecimento, ou deliberada vontade de sonegar verdades.

“Saber” implica “estar no meio”, no “meio das coisas”, das realidades e dos problemas, sendo fácil, na Saúde como na Vida, estar “fora e debitar opiniões”.

São muito claras as posições do Governo veiculadas pela ministra da Saúde, tanto a propósito do “cancro do SNS” como, mais recentemente, se desculpou “genuinamente e do fundo do coração”, pela má interpretação do que disse.

Situações explicadas por Kant quando diz que “quem não sabe o que procura não interpreta o que vê” e por Freud, para quem os “actos falhados” não são mais que sintomas do pensamento recalcado, oposto ao das intenções politicamente correctas que importa afirmar.

Sendo que o primeiro sentimento do homem é o da existência e o segundo o da preocupação com a sobrevivência, serão interessantes as ilações que se podem tirar do que vemos na AR e o modo como “estará no meio” das situações.

Será que o modo como “está no meio” dos problemas corresponde ao lugar em que a ministra da Saúde se sentou, longe do meio e quase na extremidade direita, na Bancada?

Que futuro poderão esperar os portugueses em Saúde?

Não sei.

Sei que têm o direito a que seja feita uma reflexão profunda sobre condições estructurais e capacidades económicas e financeiras que possam viabilizar a reconstrução de um eficiente Sistema Nacional de Saúde, secundados por compromissos claros de responsabilidade para dizer a verdade aos Portugueses.

Para que a esperança não seja vã, é necessário sentido inteligente de perspectiva, competência, meritocracia e coerência ética da decisão, que culminam no Sentido de Estado.

Dramático é sabermos que “Sentido de Estado” implica responsabilidade republicana, e isso é algo a que já nos habituaram a não saber o que é.