Enquanto escrevíamos este artigo tivemos conhecimento dos primeiros movimentos (públicos) do nosso Governo no sentido de recorrer a especialistas em comportamento humano para lidar com a crise pandémica, nomeadamente na comunicação com os cidadãos. Pelo que diremos de seguida, é uma atitude de louvar.

Perceber o comportamento humano para o poder orientar em prol do bem comum, da segurança e do bem-estar de todos é parte fundamental da gestão desta pandemia. A análise comportamental realizada no âmbito da economia comportamental tem servido, um pouco por todo o mundo, o interesse de reunir e coordenar, sob um mesmo chapéu, contributos científicos heterogéneos na sua origem, mas complementares no seu objeto: o comportamento humano padronizado, nas suas grandezas e fraquezas.

Sobre o problema que nos convoca desde há um ano, o ponto fundamental em termos comportamentais é a ponderação individual dos custos e benefícios da atitude prudente. Os benefícios residem na proteção da saúde e da vida (a própria e a alheia); os custos correspondem às fricções a que a atitude prudente nos obriga, como a lavagem frequente de mãos, o cuidado na manipulação de objetos, a utilização de máscara, à perda de remuneração em caso de paragem ou diminuição da atividade na ausência de uma garantia remuneratória, à ausência de contacto físico, de convívio, da alegria do à-vontade que nos era permitido antes desta invasão.

O resultado da ponderação parece evidente numa análise perfeitamente, ou puramente, racional. Contudo, a economia comportamental já nos ensinou há décadas que as pessoas não são perfeitamente racionais nas suas análises custo-benefício. Para economizar recursos, utilizam atalhos, ou formas simplificadas de decisão, que têm as vantagens e as desvantagens inerentes à simplificação. Permitem decidir mais depressa, mas também de forma mais automática, menos rigorosa. E são contaminados por traços típicos do comportamento humano, como o excesso de confiança, a tendência para o otimismo, aos cálculos probabilísticos enviesados e outras tendências comportamentais universais que, em maior ou menor grau, afetam a forma como todos decidimos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A habituação ao vírus, a banalização de notícias sobre internamentos e mortes, a rotina dos hábitos de proteção são fatores que concorrem para que aquelas tendências comportamentais sejam exacerbadas. Consequência direta: menos cuidado na prevenção e maior confiança de que nada de grave irá acontecer. Em termos de análise dos custos e benefícios, aumento da perceção dos custos, diminuição da perceção dos benefícios. Em termos de atitude prática: menos vigilância e prudência, maior assunção de riscos.

Este quadro sumário decorre do que já se sabe há décadas sobre a nível de racionalidade que empregamos nas nossas atitudes diárias. Ter acesso a esta informação e poder utilizá-la no desenho das políticas públicas de combate à pandemia é essencial. É até, possivelmente, a única forma de atacar eficazmente o problema. Mas, para acontecer, é necessário que a política se abra à ciência e que a ciência saiba comunicar com os decisores políticos.

Outro contributo que a área da behavioral economics nos trouxe, pelas mãos de Cass Sunstein e Richard Thaler (este último prémio Nobel da Economia em 2017) foi a noção de nudge. Um pequeno e pouco intrusivo “empurrãozinho” que conduz os sujeitos a adotar a atitude definida pelo decisor público. É uma alternativa à típica regulação de command and control, em que se cria uma norma jurídica que “obriga” a uma conduta e outra que “sanciona” o incumprimento da primeira, a regulação através de nudges permite, com custos reduzidos, levar os agentes a adotar a atitude pretendida, aquela que se crê ser a melhor para todos, sem a obrigação e sem a sanção.

Não é difícil antecipar os ganhos inerentes: a tolerância à imposição tem um limite e, várias vezes, os sujeitos regulados podem sentir-se impelidos a violar as obrigações, não apenas porque não se conformam com aquelas mas também porque, por vários motivos (ideológicos ou outros, incluindo simples «embirrações»), são simplesmente contrarians e não admitem que lhes digam o que devem fazer. Os nudges evitam essa atitude e são eficazes na condução das pessoas pelo caminho pretendido. Um exemplo simples: para se conseguir que as pessoas desinfetem as mãos pode criar-se uma norma que as obriga a essa prática e que sanciona o incumprimento ou pode simplesmente colocar-se desinfetante em locais bem visíveis e de passagem, empurrando as pessoas para a atitude desejada.

A relevância dos nudges enquanto instrumento de política pública é hoje transversal a variadíssimas jurisdições constitucionais e a sua aplicação tem garantido sucesso em várias áreas da decisão pública. Contudo, no atual contexto pandémico, suscitam frequentemente discussão por envolverem um “empurrãozinho” em matérias que interferem com direitos fundamentais. Há receios de manipulação e de falta de transparência. Como sempre, será necessário decidir-se com base em análises custo-benefício.

A questão jurídico-constitucional da suspensão e restrição de direitos fundamentais, em contexto pandémico, tem estado em cima da mesa desde há um ano. Os conceitos clássicos e geométricos de questões que, em momento prévio à pandemia, eram puramente teóricas, têm sofrido testes de stress impostos pela realidade que hoje vivemos. As circunstâncias demonstraram a necessidade de articulação e cooperação institucional entre vários órgãos de soberania: Presidente, Governo e Assembleia da República. A aplicação direta dos parágrafos dos manuais poderia, porventura, ter levado a um “bloqueio” grave e ineficiente do tratamento do problema.

Um exemplo: quando o Presidente da República aludiu, há meses atrás, à necessidade de “recomendações qualificadas” por parte do Governo, a reação generalizada da comunidade jurídica foi caricatural. Serviu, inclusivamente, de material para um conhecido comediante integrar as “recomendações qualificadas” no sistema de fontes de direito. Não são, como é evidente. Mas a questão não é meramente cómica. A eficácia que as “recomendações qualificadas”, como quaisquer nudges, podem trazer, por um lado, e a dose de manipulação e o bypass ao sistema constitucional de limites a restrições de direitos fundamentais que podem implicar, por outro, são da maior importância. Como se vê, há campo de análise psicológico, biológico e sociológico, ético e jurídico-constitucional. Até que ponto uma “recomendação qualificada” ou outro nudge desenhado para eficazmente resolver um problema é percepcionado pelos agentes como uma “obrigação” ou “proibição” não é uma questão teórica. Dela depende, por exemplo, saber a taxa de eficácia que a medida vai ter e os cuidados que se deve utilizar, para não a adoptar em “fraude encapotada” ao sistema constitucional, essencialmente estruturado em medidas de command and control.

Todos devem ser convocados para a discussão. É o momento certo para quebrar barreiras entre áreas científicas tradicionalmente apartadas e que devem unir-se sob o signo do pragmatismo. Da nossa parte, é exatamente o que faremos.