1 Tenho por vezes aqui dado notícia de utopias e de seres utópicos com poder sobre o sonho, gosto destas histórias onde se cruzam umas e outros. Revisito hoje uma delas. O primeiro acto – a descoberta de um museu improvável no Caramulo –  já aqui foi contado há uns anos. O segundo acto começou há dias e trata de uma viagem até ao Museu de Arte Antiga de algumas das mais belas peças desse museu, onde morarão até Setembro. Imperdível surpresa.

2 As boas surpresas estão a cair em desuso e sabe Deus como precisamos delas. As más concorrem entre si: a estarrecedora confusão ocorrida com o Sporting e ainda sem responsáveis e por isso a evoco; o aluguer de Portugal pelo Governo – como se o país fosse  um salão de festas daqueles que se alugam para casamentos – para receber o jogo de duas equipas britânicas, previamente recusado no seu próprio país; o day after destas feias trapalhadas, onde nenhuma “autoridade” – governamental, sanitária, de segurança – se entendeu; os Portugueses, como a bola da Champions, a serem constantemente chutados de uma “decisão” para uma “proibição”, num permanente enredo entre o grau e a natureza dos desconfinamentos permitidos; o indigesto e mal explicado equívoco com a Espanha; o temerário – e temível! –  conta-gotas usado por António Costa na ameaçadora questão da regionalização; as injustiças da Justiça… E por aí fora,  enquanto o Presidente torce o nariz e carrega no uso do verbo. Não são boas notícias, marés baixas políticas. Felizmente, há gente que consegue produzir outra vida e, sobretudo, quem acolha naturalmente a utopia para sobre ela operar, transformando-a em realidade viva.

3 Na história que repesco hoje para lhe acrescentar um happy end, tudo começou justamente com um Português com poder sobre a utopia. No caso, o poder transfigurou-se no fulgurante golpe de asa de um cidadão chamado Abel Lacerda. Ele e seu irmão João eram de excelente colheita. O pai, Jerónimo Lacerda, médico reputado, transformara o quase inacessível povoado do Caramulo numa vila altamente desenvolvida para a época (anos 20 do século passado) com variadíssimos sanatórios privados e públicos, onde se fazia escola no estudo e terapia da tuberculose, atraindo àquelas serranias os melhores médicos nacionais e estrangeiros. Os filhos herdaram-lhe a veia visionária: Abel, homem muito à frente do seu tempo e de finíssimo gosto, tinha paixão pela arte; João, pragmático e determinado, era um fazedor. Um tinha asas no pensar, o outro transformava a ousadia em matéria. Com o passar das décadas, a descoberta dos medicamentos para a tuberculose levou, porém, ao fecho dos sanatórios, a vila do Caramulo esmorecia, de repente sem préstimo nem sentido. A este declínio indesejado, os irmãos Lacerda responderam com essa sólida aliança que por vezes se tece entre a criatividade e a vontade: far-se-ia o museu que Abel sempre sonhara erguer ali. Fizeram-no, como se fosse fácil, como se a lonjura ajudasse, como se já houvesse colecção ou sombra de espólio. Não havia, mas nasceu uma interessantíssima colecção de arte e certamente a de matriz mais original no país, visto que toda ela proveio de doações e ofertas. Um caso único em Portugal e não haverá porventura melhor “retrato” do prestígio e da credibilidade desta família: de Salazar a Picasso achava-se natural oferecer ou doar arte a um desconhecido museu, anichado entre as serras de Portugal.

4 A colecção foi criada em tempo recorde (1953/57), tal como o próprio edifício, erguido à volta de um claustro, que um dia Abel Lacerda descobrira em ruínas perto de Viseu e logo adquirira como moldura para as suas obras. Mas a espécie de pressa com que tudo ele fazia, aquele misterioso, quase palpável sentido de “urgência” em correr, não era senão, afinal, o outro nome do destino: com trinta e poucos anos, Abel Lacerda morreu num brutal desastre de automóvel sem ver pronta a sua obra: o museu foi inaugurado em 1959, o irmão João, activo e assertivo, velava pelo magnífico espólio que tão bem definia o carácter invulgar do seu criador: pintura, escultura, mobiliário, cerâmica, faiança, têxteis, numa viagem pela História da Arte que começa no Antigo Egipto com a deusa Ísis com Hórus ao colo e desagua na arte portuguesa de hoje. Da garrafa mandada fazer por Jorge Álvares, um dos primeiros navegadores portugueses a chegar ao Japão, datada de 1552, até à “Mulher-garrafa” de Picasso, das telas de Chagal, Dali, Miró, Amadeu, Viana, Vieira, passando pelas deslumbrantes quatro tapeçarias de Tournai que estavam dispersas pelo mundo e que Abel Lacerda – sabendo-as o mais impressivo testemunho da chegada das caravelas à Índia – conseguiu juntar e adquirir, o que está no Museu do Caramulo é o formidável património da memória. E o que é afinal um coleccionador, senão um guardador de memórias?

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Memória acondicionada por uma minúscula equipa, um Serviço Educativo, um Grupo de Amigos generoso, mas mantida com fidelidade activíssima pelos herdeiros e eis a chave de tão invulgar aventura cultural: a devoção e o imperioso sentido de responsabilidade dos netos de João Lacerda perante esta herança – material e simbólica: Madalena, Tiago e Salvador Gouveia e seu primo João Lacerda são o testemunho de como a herança se mantém, tanto tempo depois, viva, operativa, fértil, apesar do mar das dificuldades (com a supressão de alguns, poucos, apoios estatais, o museu tem vivido exclusivamente das receitas criadas pela loja, bilheteira, mecenato do BPI e algumas empresas parceiras que se associaram ao projecto). Mas a casa esta viva e de saúde. Foi feita – e continua a ser feita – por gente que nas marés baixas faz muito mais do que não desistir.

5 A convite de Joaquim Caetano, director do Museu de Arte Antiga, algumas das mais impressivas peças do Caramulo que acima descrevi viajaram até Lisboa. A exposição tem o único titulo que poderia ter – “Colecção Utópica” – e, em certo sentido, o “único” curador que deveria ter, um sábio, subtil, sensível “servidor de arte” chamado Aniseo Franco. Pelo que vi e me contam, abrir o cofre do Caramulo dentro do Museu Arte Antiga tem sido simultaneamente uma festa e uma surpresa. Há pasmo e maravilha. E tributo, claro, a quem honra o país preservando o seu melhor património.

(Três dos netos de João Lacerda – Tiago, Madalena e Salvador Gouveia – eram filhos de António Patricio Gouveia. António era alguém a quem os deuses amavam. Morreu com 32 anos ao lado de Francisco Sá Carneiro de quem era chefe de gabinete, numa viagem de avião que não chegou ao seu destino.)

6 E quem nos diz que quando elas, ainda muito jovens, agarravam nos pincéis e nos lápis, deixando a inspiração soltar-se no vazio da folha de papel ou ansiando por ela diante de uma tela em branco, aquelas mulheres – pintoras que hoje, com génio e brilho nos desafiam na Fundação Gulbenkian – não perseguiam também uma utopia? Ou não operavam já sobre ela? Não será errado pensar isso quando as olhamos agora, imaginando ao mesmo tempo os seus começos difíceis, hesitações e titubeios, talento por florir, génio por irromper? Mas lá estão elas, arte no feminino – escultura, pintura, instalações, desenho, filme, vídeo. Em comum – dizem-nos – “têm  espírito de subtileza, de afirmação  de poder”. Interrogo-me em quantas delas não habitou também o poder de agir sobre uma utopia?