Cá estamos nós outra vez. Amanhã, é dia de voto; hoje, é dia de silêncio. Numa demonstração de que há quem na política aspire à pastorícia, os jornalistas portugueses têm ao longo deste sábado a sua liberdade de informar comprimida em nome de uma relíquia do plioceno político a que se deu o nome de “dia de reflexão”.

Há duas semanas, no Debate da Rádio, os jornalistas perguntaram aos candidatos se fazia sentido manter a obrigatoriedade do dia de reflexão. Tirando a Iniciativa Liberal, todos acharam animadamente que sim — e Paulo Raimundo até juntou uma graça muito elogiada que fez grande sucesso naquela audiência particular: “Depois de 15 dias de campanha, o dia de reflexão sabe bem para refletirmos na horizontal”.

Naturalmente, o líder do PCP poderia sempre aproveitar este sábado para “refletir na horizontal”. Mas esse momento de descanso heróico não precisa de ser feito através de uma lei que proíbe os jornalistas de exercerem a sua profissão. Se os líderes partidários querem reservar para si um dia sem política, escusam de impor aos outros um dia sem direitos.

A ideia do dia de reflexão, naturalmente, é proteger os eleitores e permitir que eles meditem sobre tudo o que ouviram na campanha sem intrusões nem incómodos. Como é óbvio, trata-se de uma medida terrivelmente paternalista. Mas é pior do que isso: é uma ideia inaplicável. É possível silenciar a imprensa, mas não é possível silenciar o universo. Por isso, ao longo deste sábado, ignorando o espírito proibicionista da Comissão Nacional de Eleições, os eleitores vão falar sobre política onde bem entenderem e vão ler sobre política nas redes sociais. Afinal, apesar das suas ambições de omnipotência, o nosso legislador ainda não consegue colocar um polícia no Twitter, no Instagram ou no Facebook. Por isso, se surgir alguma manobra de desinformação de última hora, a serviço de interesses obscuros — como tem surgido sempre —, não haverá jornalistas com liberdade para confirmarem ou desmentirem um boato, uma fabricação ou uma mentira.

Desta vez, tudo isto é especialmente absurdo. No domingo passado, com a possibilidade do voto antecipado, 175.599 pessoas fizeram a sua escolha nestas legislativas. São mais votos do que tiveram o Livre e o PAN nas últimas eleições; pouco menos do que tiveram PCP e BE. Ou seja: é muita gente, mais do que suficiente para ser decisiva nos resultados de 10 de março. Na véspera, ao começo da noite, António Costa discursou num comício do PS, transmitido em direto pelas televisões, e dirigiu-se especialmente a todos aqueles que iriam votar dali a umas horas. Queria “conversar” com eles. E “conversou”, como aliás lhe competia. Seguramente, nenhuma daquelas 175.599 pessoas votou pior por causa disso.

Enfim, peço desculpa por estar a criar um incómodo por causa disto. Se quem manda em nós diz que o importante hoje é “reflectir na horizontal” é porque deve ser mesmo assim. Bom descanso.

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