Só há pouco tomei conhecimento de um texto que Vasco Rosa publicou no Observador no passado dia 17 sobre o meu folheto Anedotas do Nemésio.

Vasco Rosa não achou nenhuma graça a Anedotas do Nemésio nem às anedotas de Nemésio. Está no seu direito. Como está no seu direito qualquer pessoa que não suporta anedotas ou alguma espécie de anedotas, que, por tacanhez, rigidez mental, incompreensão do que seja o cómico, é incapaz de se rir ou de sorrir (e até é capaz de se ofender) com alguma anedota. Há gracejos que matam, garantia Camilo.

VR está no seu direito; escusava era de evidenciar tanto mau humor, que faz logo desconfiar da sua qualidade crítica; escusava de dizer tanto disparate, de exibir tanta ignorância, de fazer tantas distorções. Vejamos:

1- Diz VR que fui “incapaz” de ouvir “açorianos vivos” com exceção de António Valdemar; na bem visível lista de informantes que publiquei na p.26, António Valdemar é o 5º; o 3º é o bem conhecido e vivo açoriano António Manuel Machado Pires, que foi reitor da Universidade dos Açores.

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2 – VR coloca sempre entre aspas uma palavra que usei, informante, e num caso até acrescenta um irónico “(sic)”. Achará talvez que eu devia dizer informador. Vê-se que ignora o uso técnico da palavra informante no campo da literatura oral — e afinal o seu significado comum, registado até nos dicionários comuns.

3 – Escreve VR: “Arnaldo Saraiva, 77”; errado, deveria ter escrito: “Arnaldo Saraiva, 76”.

4 – Segundo VR, se o meu “propósito fosse o de reclamar atenções” a Nemésio eu “poderia ter escolhido outras vias de intervenção”. Poderia. Mas sou eu que decido as minhas “vias de intervenção”, embora possa valer-me de sugestões que por acaso nunca esperaria ou esperarei de qualquer VR. E desta vez achei que devia fazer o que nunca fora feito: mostrar, graças a um razoável conjunto de narrativas breves, o lado jocoso e humano, demasiado humano, de Nemésio, da sua complexa personalidade, contrariando a geral tendência para a hagiografia e para a sublimação essencialista e idealista, ou desmoralizando ideias e frases tão pomposas como esta de VR: “gostaríamos de saber – de sonhar saber… – é como é que este homem simplesmente pôde existir”…

5 – VR entende que os textos que reuni são “fait-divers” que deveriam ter ficado “na gaveta como coisa de somenos”. Ele passou como gato por brasas sobre a minha “perspectiva histórica da anedota como género literário” que dá como apressada – esperaria decerto encontrar um longo tratado numa pequena parte de um folheto — sem lhe acrescentar um só ponto, sem discutir nada do que ali se diz e sem assinalar a quantidade de novidades que lhe dei. E nem se viu afetado por uma passagem (p.30) em que estranho que ainda possa haver quem pense que “as anedotas só merecem circulação oral, e se passadas a escrito não devem ser publicadas, devem ficar «inéditas» (como as que se guardavam em dois manuscritos portugueses dos séculos XVI e XVII; só foram publicadas na segunda metade do sec.XX). Pelo contrário, ficou exasperado por “um professor de literatura” ter vindo “por a nu pequenas histórias”. Esse professor quis justamente enfrentar mentalidades reacionárias, hipócritas e ignorantes que negam o valor cultural, crítico e até estético da anedota. Tais mentalidades poderão admitir que as anedotas, fictícias ou históricas, se contem em cafés, em salões, em tertúlias, e até passem a escrito, mas neste caso devem ficar “na gaveta”, não podem chegar atempadamente ao livro – que horror. E claro que para tais mentalidades as anedotas não merecem atenção e estudo — como se não se tratasse de textos eminentemente comunicativos, que têm curso quotidiano, que circulam às vezes muito rapidamente por todo o planeta, que nenhuma comunidade civilizada dispensa, e que implicam a crítica e o cómico descompressor e profilático. Mais: as anedotas podem dar imagens expressivas das personagens ou das pessoas que nomeiam, de quem as conta, e de quem as lê ou ouve e ri às vezes a bandeiras despregadas ou exibe apenas um riso amarelo. Coisas de somenos.

6- VR mostra-se indignado por eu não ter deixado “na gaveta” as anedotas nemesianas. Mas não consta que se tenha indignado com os que, desde 1986, puseram a correr em livro ou jornal – que indiquei – uma dúzia dessas anedotas.

7 – Eu falei na “extensa fortuna crítica” de Nemésio, que não caberia num folheto, e limitei-me a indicar só as 10 publicações onde encontrei anedotas nemesianas. Tanto bastou para que VR me desse como “incapaz de lançar mão de mais bibliografia útil”. Vê-se que, abalizado avaliador das minhas capacidades, ele não sabe distinguir entre “fontes impressas” e “bibliografia útil”, ou “bibliografia passiva”.

8 – Escrevi no meu posfácio que mais do que nas anedotas de Nemésio, “em boa parte involuntárias, é na sua poesia que esse bom humor se define e se refina”, dando exemplos de passagens de vários dos seus livros de poesia e de modalidades ou técnicas do seu cómico. Tanto bastou para que VR me censurasse por “uma superficialíssima recensão do humor na obra poética e ensaística de Nemésio”, e por me ter escapado a crónica. E porque não o romance, o conto, a carta, a biografia, etc.? Vamos todos esperar a sua profundíssima recensão desse humor, que se adivinha na verdadeiramente original teoria que já adiantou: “o especial humor de Nemésio pode ter origem na sua insularidade ou açorianidade”. Bravo.

9 – Em vez de ver no meu folheto uma homenagem e uma prova da minha simpatia e admiração por Nemésio, ele viu um “subtil e ridículo ajuste de contas pessoal”, e uma vontade de “apoucar um homem de grande envergadura”, apesar dos “elogios superlativos que, já tão gastos, nada dizem”(os de VR é que são sublimes — “torre do tombo ambulante”… — ou fresquíssimos: “carismático escritor e professor”, “um dos açorianos-portugueses mais admiráveis do nosso século-passado”, “homem de grande envergadura”…). Está-se mesmo a ver (ou não está-se?) que quiseram ofender, ajustar contas com e apoucar Nemésio todos os seus amigos e admiradores, e até o filho, que publicaram ou me contaram e contam anedotas nemesianas. Claro que nunca me daria ao trabalho de recolher anedotas de Nemésio se o não tivesse como uma personalidade complexa e superior. De VR, por exemplo, nunca recolheria anedotas, mesmo que já me tenham contado duas ou três, por sinal com muito pouca piada.

10 – Censura-me VR por “nunca”, antes do folheto, ter dedicado a Nemésio “uma atenção crítica”. No que mais uma vez revela a sua falta de escrúpulos e a sua ignorância; não investigou se me ocupei de Nemésio em aulas ou em colóquios, nem leu textos que publiquei, dois dos quais saíram também em separatas.

11 – Apesar de ser contra a divulgação impressa das anedotas nemesianas, acha VR que eu deveria ter alargado a minha recolha “a mais açorianos vivos” ou, imagine-se, “já mortos”, assim como a brasileiros. E porque não a centenas e centenas de pessoas que privaram com Nemésio, a gente de outros países onde Nemésio viveu ou que demoradamente visitou? Admiti que as 47 anedotas que recolhi — um corpus razoável — “decerto irão suscitar o aparecimento de algumas mais”; eu próprio já me lembrei de mais duas ou três. VR esquece desde logo os limites de um “folheto”; e não parece tão subtil que possa notar que esse “folheto” tem o título Anedotas do Nemésio e não Todas as Anedotas do Nemésio, ou mesmo: As Anedotas do Nemésio.

12 – No mesmo parágrafo, VR acha por bem associar Nemésio e Jorge de Sena – por sinal dois grandes homens incompatíveis ou incompatibilizados – para desferir duas estocadas pessoais. Diz ele que eu lancei “num jornal a suspeição torpe de que o grande escritor havia sido afastado na Marinha por causa de ‘um episódio homossexual'”. VR ouviu certamente um boato que foi posto a circular um ou dois dias antes de sair o Expresso de 20/3/1982 com um texto meu sobre a não admissão de Sena na Escola Naval depois das provas prestadas no navio-escola Sagres; mas se VR se tivesse dado ao trabalho de ir ler, como se esperaria de um crítico, o que escrevi (ou se tivesse lido tão só o que veio no Público de 17/7/2010) verificaria que eu fiz exatamente o contrário do que ele diz: defendi que foi por razões de ordem militar ou militarista — não por comportamento homossexual, como ao tempo e depois alguns insinuavam — que Sena foi impedido de ingressar na Marinha. Mas a frase de VR tem mais que se lhe diga: para ele, como para alguns “intelectuais progressistas” que em 1982 tive de enfrentar, uma simples referência à hipótese (negada) de homossexualidade era, e VR prova que ainda pode ser, diabolizante: chamusca a biografia.

13. VR não teve pejo em escrever que o meu folheto é um “inesperado, subtil e ridículo ajuste de contas pessoal com um director de departamento académico que a dado momento não lhe abriu as portas que a sua vaidade petulante reclamava”. A mentira que aí vai é bem mais grave do que a insinuação ou o insulto, cobardes e desprezíveis (não ofende quem quer), talvez nascidos justamente de um despeito universitário e de uma petulância que não sou eu que tenho. Quanto à mentira baste dizer isto: Vitorino Nemésio convidou-me no início de 1967, quando eu preparava a minha tese de licenciatura, que ele orientava, para trabalhar no Instituto de Cultura Brasileira da Faculdade de Letras de Lisboa. Aí trabalhei, pago, até Novembro de 1968 – até ao dia da defesa da tese, de que ele foi arguente e que foi classificada com uma das notas mais altas que então se davam. Exatamente no dia seguinte à defesa da tese parti para França, com uma bolsa francesa que ganhara meses antes. E estava feliz em Paris quando recebi um convite – que inicialmente declinei – para ensinar na Universidade do Porto, cidade onde com prazer me fixaria. (Curiosamente, foi num colóquio em Paris, em que falei sobre Nemésio, que convivi pela última vez com ele, com o agrado de sempre). Não parece óbvio que eu tinha boas razões para “ajustar contas” com Nemésio tantos anos depois da sua morte? E num folheto? Sabe-se que ele prezava esse tipo de publicação; lembro que a seu pedido selecionei imagens de folhetos brasileiros de cordel, que usou no Violão do Morro.

Como fica demonstrado, as duas estocadas que VR quis dar na pessoa do autor do folheto só atingem VR. Essas estocadas e os erros, as distorções, a ignorância e a indigência da falsa crítica dos conteúdos do folheto não denunciam apenas um infracrítico, um intelectual sem escrúpulos, um pequeno ressentido (de quê? porquê?) — denunciam também um sujeito mal humorado.

Como prova uma antologia de Ruy Castro, pode haver bom humor até no mau humor. Mas o mau humor de Vasco Rosa é só mau, é só mauzinho. Rasca. Lamentável.

Texto de Arnaldo Saraiva, autor de “Anedotas do Nemésio”