Começa a ficar cada vez mais estreita a linha que separa os videojogos do cinema. Last Day of June, uma pequena produção indie do estúdio italiano Ovosonico é disso um dos mais fortes exemplos, deixando-nos na dúvida se não o poderemos considerar também um dos mais tocantes filmes de animação deste ano.

A temática é pesada e contrasta com a beleza e o ambiente terno de todo o jogo. A inevitabilidade da morte e o sofrimento de quem fica vivo acaba por ser a tela onde Massimo Guarini e a sua equipa pintam esta história triste, colocando-nos a dúvida dos limites que quebraríamos para evitar a morte de quem amamos.

É esse o confronto de Last day of June, na forma delicada como nos faz seguir os últimos momentos da vida de June, antes do terrível acidente de viação que a vitima e que deixa o seu marido Carl preso a uma cadeira de rodas.

Carl acorda assolado por pesadelos e acossado pela incapacidade de ultrapassar a morte do amor da sua vida, o que ao mesmo tempo lhe confere o poder de voltar atrás no tempo para o evitar. O que se segue, mecanicamente, é uma sequência de revisitas às últimas horas da vida de June, pelos olhos dos restantes personagens que habitam o seu pequeno mundo, à medida que vemos os pequenos eventos aparentemente inconsequentes que levam ao despiste e ao fatídico acidente. A resolução de puzzles narrativos são os momentos que alteram a linha de enredo da vida de cada um dos personagens periféricos a June, e que vão conduzir à sua morte.

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O peso da repetição do momento do acidente (ainda que apenas ouçamos ou som do embate antecedido de um clarão) é aquilo que torna a nossa angústia progressivamente mais pesada. Sempre que tentamos alterar o passado sem sucesso o dia termina com o acidente. Sempre que conseguimos alterar o decorrer dos eventos, um novo elemento entra em cena e o dia termina com o acidente. Todas as nossas ações levam-nos ao final do dia onde os últimos momentos de June surgem e cuja sequência em vídeo não pode ser ultrapassada com um botão: temos sempre de ser confrontados com a terrível realidade do casal e assisti-la mais uma vez.

O desespero de Carl (e o nosso) em conseguir alterar com eficácia a corrente de eventos que leva ao último dia de June é uma das representações emocionais mais duras que os videojogos nos conseguiram trazer de forma cinematográfica. Sem uma única linha de diálogo inteligível ou algum texto a acompanhar, há uma mutiplicidade de micro-enredos que percebemos nos seis personagens que compõem esta história, e que nos mostram como as suas tristezas e vivências pessoais vão conduzir ao ponto específico do dia em que o despiste de Carl e June acontece.

E sempre que conseguimos mudar o passado, essa alteração leva a um novo acontecimento que invariavelmente leva novamente ao acidente. Apesar duma abordagem de quase realismo mágico, vamos sentido o peso da consciência de que não importa quantas alterações ao passado façamos mas que o destino de June está traçado.

Um dos grandes elementos de comunicação desta obra acabou por ser a inspiração no trabalho de Steven Wilson, o “rei do prog” como quase todos os media e proggers o apelidam, apesar da recusa do músico em relação ao título e que acabou por criar um mediatismo de nicho para este “filme interativo”. Uma obra sentimental baseada nas suas composições, especialmente na música “Drive Home” e cuja estética é influenciada pela animação do videoclipe oficial. É brilhante o modo como surgem a músicas despidas de vocalização no ambiente e como são utilizadas como expoente emocional, recriando a mistura ideal para Last Day of June: a criação de um ambiente etéreo com laivos de ternura e melancolia.

Last Day of June é uma experiência curta, e são perto de duas horas que passamos neste pequeno lugar com muitas histórias tristes para contar, aproximando-o em termos de ritmo e de duração a um filme de animação interativo, que pode ser vivido apenas no PC e na PS4.

Revelar qualquer pormenor sobre a história ou sobre a sua conclusão é destruir por completo a arrebatadora viagem emocional que ele é. Fica apenas a consciência de que esta é uma bela história de amor e de perda, à qual é quase impossível assistir sem derramar uma lágrima. Jogá-lo é saber, à partida, que pelo meio dum conto de amor há uma tristeza crescente e que é aumentada pelo facto de Carl (e o restante elenco) nos representar, na imersão que os videojogos permitem.

Este não vai ser um jogo hiper-mediatizado até pela dimensão da equipa que o desenvolveu, mas é certamente o melhor e mais belo jogo de 2017 do qual não vão ouvir falar.

Ricardo Correia, Rubber Chicken