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Chegou sorridente, fiel ao seu estilo. Colar de pérolas, pulseiras, óculos vermelhos, o ar intocável de uma matriarca que tem de dar uma reprimenda aos meninos irrequietos. Foi mais ou menos isso que aconteceu na hora que se seguiu. Virou-se contra os jornalistas, virou-se contra os funcionários autárquicos com quem lidou ao longo de anos, virou-se contra os partidos adversários, lançou suspeitas sobre o financiamento de outras organizações políticas e negou tudo. Negou que seja corrupta, que tenha promovido uma contabilidade paralela, que tenha participado em esquemas de branqueamento de capitais.
Rita Barberá Nolla. Talvez o nome não lhe diga nada, mas em Espanha praticamente não há dia em que não apareça nas manchetes e nas primeiras páginas dos jornais. Ela foi presidente da Câmara Municipal de Valência entre 1991 e 2015. No ano passado até ganhou as eleições autárquicas, mas três partidos de esquerda coligaram-se para pôr fim ao reinado de 24 anos da mulher que o Partido Popular (PP) considerava um exemplo e que chegou a ouvir de Mariano Rajoy o epíteto de “alcaldessa de Espanha”, devido às cinco vitórias eleitorais consecutivas.
Rita Barberá Nolla
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Quem é? Ex-presidente da Câmara municipal de Valência, figura importante do Partido Popular (PP) e próxima do seu líder, Mariano Rajoy
O que terá feito? É suspeita de ter usado dinheiros públicos em várias atividades ligadas ao partido.
O que representa? Os vários casos de corrupção que têm afetado o partido e que tornam (ainda) mais difícil a missão do PP, em obter apoios para formar governo.
Quando saiu da câmara valenciana, tudo mudou. E só tem piorado. Dois dias depois das eleições legislativas de Espanha e três dias depois de o Observador ter estado em Valência em reportagem, o El Mundo divulgou uma história com contornos insólitos. “Rita Barberá gastou 25.226 euros em laranjas para a cúpula do PP”, lia-se numa das páginas interiores do jornal, que (como não podia deixar de ser) reservava a capa para a delicada situação política saída das urnas a 20 de dezembro. Desde então até agora o impasse político tem-se mantido, mas as suspeitas de corrupção que recaem sobre Rita e a equipa autárquica do PP não têm parado de aumentar. E isso está a tornar-se um problema sério para Mariano Rajoy, cujas esperanças de voltar a ser presidente do governo podem ficar definitivamente comprometidas se os casos de corrupção continuarem a acumular-se como cogumelos.
Na quinta-feira passada, Rita Barberá quebrou o silêncio. A ex-presidente de câmara, agora senadora — e por isso protegida legalmente de ser alvo de inquéritos judiciais –, deu uma conferência de imprensa de mais de uma hora e negou tudo. Tratando vários jornalistas pelo nome próprio, acusou a “esquerda radical” de montar uma campanha contra ela e a comunicação social de ir na conversa. Evocou o pai, antigo jornalista; deixou no ar a ideia de que a justiça espanhola está mais preocupada com ela do que com os casos que envolvem dirigentes do PSOE na Andaluzia; disse estranhar o modelo de financiamento do Ciudadanos; negou que o PP seja intrinsecamente corrupto e, por fim, deixou uma mensagem que pode ser um autêntico beijo de morte. “Doy las gracias a mi buen amigo Rajoy.”
Dos naranjas para tí
Entre 2011 e 2014, a Câmara Municipal de Valência gastou mais de 25 mil euros em laranjas. Durante esses anos, pelo Natal ou pelo Ano Novo, Rita Barberá mandou caixas do doce citrino a vários dirigentes do PP — Mariano Rajoy incluído. A história das laranjas é apenas um pormenor insólito num conjunto de aparentes irregularidades mais graves, mas é exemplo de como funcionava a cidade nos últimos dias da alcaldessa. “Quando estás muitos anos no poder, o poder corrompe”, diz ao Observador Juan Nieto, o jornalista do El Mundo que denunciou o caso das laranjas e vem acompanhando o tema há meses.
Ele estava sentado numa das primeiras filas durante a conferência de imprensa de quinta-feira e foi um dos jornalistas a quem Rita tratou pelo primeiro nome, ironizando: “Tu sabes muitas coisas”. A impressão com que Juan ficou do que Barberá disse é que, “apesar de tudo o que se está a passar, ela continua a dominar a cena política. Sempre foi um animal político e não perdeu a face”. E isso explica-se porque, contrariamente ao PP de Valência (que lhe virou as costas), o PP nacional está dividido ao meio sobre como há de reagir.
Não é novidade. Pelo menos desde 2009, altura em que rebentou o chamado caso Gürtel, que o partido tenta perceber como reagir aos casos de corrupção. E já foram vários, quase todos relacionados com transferências ilegais de empresas para o PP, de comissões sobre contratos públicos e de gastos indevidos de dinheiro dos contribuintes. Só Rita Barberá está envolvida em dois casos: o Ritaleaks e a Operação Taula. No primeiro, a ex-autarca é suspeita de ter usado o dinheiro dos valencianos para pagar jantares do partido, várias festas de aniversário, quartos de hotel e, entre outras coisas, a ida ao funeral de Manuel Fraga, ex-presidente do PP. A viagem até Santiago de Compostela e a dormida lá custaram, em 2012, cerca de dois mil euros.
“O PP de Valência rompeu com ela totalmente. Não querem sequer ouvir falar dela”, diz Juan Nieto. Em Madrid, nem por isso. “Ela continua ali porque tem um amigo chamado Rajoy, que lhe deve muito, porque ela o ajudou numa altura em que a liderança dele esteve posta em causa.” E essa lealdade não vai desaparecer, mesmo que Rajoy se queime. “Se o prejudica? Evidentemente que sim, mas ele não vai abandoná-la.”
Rastejar e sair limpo
A capacidade de regeneração do PP é decisiva para o futuro do partido e pode ter um papel igualmente importante no futuro de Espanha. Para já, Mariano Rajoy assemelha-se à personagem de Tim Robbins no filme Os Condenados de Shawshank, cuja fuga da prisão Morgan Freeman resume numa frase cheia de eloquência: “Rastejou por um rio de merda e saiu limpo do outro lado.”
Numa situação de impasse político, em que o futuro é incerto e em que não parece provável que Pedro Sánchez, líder do PSOE, consiga a investidura de presidente do governo, Mariano Rajoy tenta manter-se longe de tudo o que cheire a confusão, com a esperança de ainda voltar ao poder. Vencedor das últimas eleições, Rajoy está convicto de que merece uma nova oportunidade para governar, sobretudo por ter conseguido evitar que Espanha pedisse um resgate financeiro. Na semana passada, o líder popular colocou-se do lado de Barberá e defendeu que não devia ser levantada a imunidade judicial de que Rita goza por pertencer ao Senado. Isso não caiu bem dentro do partido, onde alguns dirigentes mais novos reclamam uma purga dos militantes tóxicos, mas também não agradou aos espanhóis. Segundo uma sondagem apresentada pelo El País na quinta-feira, oito em cada dez eleitores acham que está na hora de Rajoy se ir embora.
Ou seja, a corrupção pode não o deixar nadar em águas limpas. Seja para tentar um novo acordo para formar governo, depois de Sánchez, como é mais do que esperado, ser ‘chumbado’. Seja para conquistar mais uns votos que permitam alianças mais simples, se houver novas eleições, o que parece ser a única via.
“Não penso que o PP seja um partido estruturalmente corrupto. Não me parece que lhes esteja no ADN”, comenta Juan Nieto, que, com um otimismo digno de jornalista, acredita que é possível um verdadeiro combate à corrupção e uma verdadeira regeneração do sistema político espanhol. Rita Barberá, para já, vai continuar por aí, sorridente como sempre, à espera que a Justiça se pronuncie. “Quando acabar tudo isto, os jornalistas, os políticos e a sociedade civil têm de se sentar juntos para pensar como é que isto aconteceu”, conclui Juan.
A “maioria negativa” do PSOE
Menos otimista está o líder do PSOE, Pedro Sánchez. O historial de corrupção do PP leva a que o partido tenha de se “regenerar na oposição”, defende o socialista. Foi isso que foi dizer a Mariano Rajoy quando se deslocou ao palácio de Moncloa, três dias depois das últimas eleições, para lhe dizer que não viabilizaria um governo liderado pelos “populares”. Porquê? “Porque os cidadãos votaram pela mudança.”
¿Conoces los resultados de las #Elecciones20D en tu provincia? Aquí tienes un buscador https://t.co/p8ou0fJWzu pic.twitter.com/o4CBzuwpLN
— COLPISA (@ColpisaNoticias) December 21, 2015
Se a votaram, ainda não a viram. Hoje, mais de dois meses depois das eleições, continua a incerteza política em Espanha. Há um acordo entre dois partidos (PSOE, de centro-esquerda, e Ciudadanos, de centro-direita), mas os dois, juntos, não formam uma maioria de governo. Pelo que Sánchez encabeça assim uma “maioria negativa”, nas palavras do primeiro-ministro e líder socialista português, António Costa, que a descrevia assim enquanto negociava com Bloco e PCP:
“Nós não inviabilizamos governo, sem termos governo para viabilizar. (…) Ninguém conte connosco para sermos só uma maioria do contra, sem condições de formar um governo credível e alternativo ao da direita.”
O jogo do passa culpas e o que aí vem
Esta terça-feira, às 16h30 (15h30 portuguesas), o líder do PSOE comparece ao Congresso de deputados, na capital espanhola, para expor o seu programa de governo. Na manhã seguinte, há debate entre os líderes dos partidos com assento parlamentar e, às 21h00 (20h00 portuguesas), Pedro Sánchez submete-se à primeira votação para ser investido presidente do governo espanhol. Para o ser, tem que ter maioria absoluta (mais de 50% de votos a favor), uma missão que se afigura impossível.
Calendário
- Dia 1 de março (terça-feira) — Às 16h30 (15h30 portuguesas), Pedro Sánchez expõe o seu programa de governo no Congresso, perante os deputados
- Dia 2 de março (quarta-feira) – De manhã, os líderes dos outros partidos pronunciam-se. Sánchez estará presente e terá 10 minutos para responder. Às 20h00 portuguesas, submete-se à primeira votação de investidura. Para ser aprovado, mais de 50% dos deputados têm de votar favoravelmente.
- Dia 4 de março (sexta-feira) – Se não vir a sua investidura aprovada à primeira, Sánchez voltará ao Congresso na sexta-feira à noite, para nova votação. Aí, precisa “apenas” de ter mais votos a favor do que contra (pelo que precisa que PP ou Podemos se abstenham)
Como a sua investidura não será aprovada à primeira, nova votação aguarda-o, sexta-feira à noite. É nesse momento que Sánchez aposta, porque aí precisa “apenas” de uma “maioria simples” (ou seja, de ter mais votos a favor do que contra). Mas tem um problema: para o conseguir, precisa de convencer ou o Podemos ou o PP a absterem-se, quando os dois partidos já anunciaram que votarão contra. O PP, porque foi o partido mais votado e acha que é a si que cabe governar, o Podemos porque também quer estar no governo com os socialistas mas não aceita as suas cedências programáticas ao Ciudadanos.
Se Pedro Sánchez fracassar, a decisão passa para as mãos do Rei. É a Felipe VI que caberá tomar uma decisão, entre duas possíveis: voltar a ouvir os líderes dos partidos e escolher um deles para ir a votos no Congresso, ou deixar correr as negociações e esperar que Rajoy ou Sánchez lhe comuniquem assim que tiverem reunido os apoios necessários. Há ainda uma terceira via: a nomeação de uma figura independente. Esta, contudo, é improvável e nunca antes foi testada.
O mais plausível é que se assista a uma segunda ronda de negociações, já a partir da próxima semana. Os partidos terão então quase dois meses para fazer o que não conseguiram nestes dois últimos, isto é, chegar a acordo. Se no dia 2 de maio não houver fumo branco, Espanha volta a eleições no dia 26 de junho.
Por agora, PP, PSOE, Ciudadanos e Podemos aproveitam para “passar culpas” entre si, ao mesmo tempo que negoceiam. Porque os quatro sabem que, numa eventual ida às urnas, os espanhóis castigarão os partidos que considerarem responsáveis pelo impasse. E não descurarão o “voto útil”, quer à esquerda (deverá ser esse o apelo do PSOE, que a 20 de dezembro teve o seu pior resultado), quer à direita (passará por aqui a estratégia provável do PP). Se o peso dos casos de corrupção não o afundarem.
A minha esquerda é melhor do que a tua
Mas porquê tanta dificuldade? Num primeiro momento, pela inflexibilidade do PSOE, que se recusou a viabilizar um executivo de Rajoy e tentou um acordo ‘à portuguesa’, com visita do líder socialistas espanhol a Portugal para se aconselhar com António Costa, mesmo que para uma “geringonça espanhola” faltassem peças (não bastavam alianças simples). Agora, por uma outra razão: é a Sánchez que cabe formar governo e na origem das dificuldades está uma guerra entre as esquerdas espanholas.
Assim que foi incumbido pelo Rei da tarefa, o líder do PSOE mostrou ao que vinha: queria “estender a mão à direita e à esquerda”. O Podemos torceu o nariz, recusando-se a aceitar que o PSOE cedesse às exigências do Ciudadanos. Os socialistas fizeram-no e o Podemos não perdoou: daí o veto à investidura de Pedro Sánchez.
O problema é a matemática. Mais do que por afinidades ideológicas com o Ciudadanos (em campanha, o líder do PSOE foi particularmente duro com um “partido de direita”, que classificava de “novo PP”), Sánchez cedeu aos centristas porque, se não o fizesse, ficava nas mãos dos partidos independentistas espanhóis. Mesmo que os conseguisse convencer a viabilizar o seu executivo (Pablo Iglesias bem tentou, sem sucesso), ficaria a depender destes. E, se Sánchez não o via com bons olhos, os “barões” socialistas nem queriam ouvir falar da ideia, ainda que o Podemos parecesse, inicialmente, estar disposto a abdicar de uma das suas linhas vermelhas: o referendo à independência da Catalunha. Mais tarde recuou e manteve a exigência.
Por agora, a pressão entre partidos vai aumentando de tom. Afinal, ninguém quer ficar com o ónus do impasse, que se prolonga há dois meses sem fim à vista. O PSOE sugere que a responsabilidade é do Podemos: “São tão de esquerda que são capazes de votar contra um candidato socialista, para que o PP continue a governar”. O Ciudadanos avisa os populares que, ao votar “não” a Sánchez, estarão a votar ao lado do partido de Iglesias. E ainda lembram a Rajoy que estes podem pôr em causa a Constituição espanhola, com a sua ideia de Espanha enquanto país “plurinacional”.
Podemos e PP vão-se defendendo como podem, perante as acusações de “imobilismo”. Ao ataque estarão dois partidos (PSOE e Ciudadanos) que têm um trunfo para mostrar aos eleitores e cidadãos do país: um acordo firmado, ainda que que insuficiente para resolver o impasse. A não ser que Pablo Iglesias (Podemos) e Mariano Rajoy (PP) voltem atrás com as palavras, ainda não será esta semana que Espanha volta (finalmente) a ter governo.
Os investidores já estão a votar. Com os pés.
E com tanto impasse — a “favor” de Espanha está o facto de o Orçamento do Estado para 2016 ter sido aprovado antes das eleições — a economia já se ressente.
A bolsa de Madrid está entre as que mais caem na Europa nestes primeiros meses – turbulentos – de 2016. O índice IBEX 35 perde mais de 12% este ano, mas a trajetória descendente para a bolsa acentuou-se logo a partir de dezembro, o mês das eleições. Se recuarmos até ao início de dezembro, o índice das 35 maiores empresas espanholas já perde quase 20% – são quase 111 mil milhões de euros que se esfumaram da bolsa de Madrid.
Este é um dos reflexos palpáveis da “incerteza” e da “perda de confiança” de que a Comissão Europeia já veio falar, num aviso claro a Espanha. Bruxelas disse no final de janeiro que “as dificuldades para formar governo podem desacelerar a agenda de reformas e provocar uma perda de confiança e uma deterioração da perceção de risco aos olhos dos mercados“.
A Comissão Europeia tem feito elogios aos progressos que têm sido feitos nos últimos anos, sobretudo no que diz respeito a reformas estruturais como as relacionadas com as leis laborais. Mas nem por isso Bruxelas deixa de avisar que o país vizinho está em risco de não cumprir as metas de consolidação orçamental este ano. O que é particularmente preocupante, porque a Comissão Europeia estima que 2016 seja mais um ano de subida da dívida pública espanhola (em função do PIB). Se o PIB (produto interno bruto) não crescer tanto quanto esperado, ainda pior ficará o rácio de endividamento público – precisamente porque este é calculado em função do PIB.
As agências de rating já estão a alertar os clientes para a encruzilhada em que Espanha se encontra. “Na opinião da Fitch, o resultado inconclusivo das eleições e o panorama político mais fragmentado aumentam os riscos de um governo instável e de dependência de elementos políticos mais radicais, que possam penalizar o ímpeto de reformas e a consolidação das contas públicas”, pode ler-se numa nota recentemente emitida pela agência de rating.
Contudo, ainda que na bolsa de valores já se note uma pressão específica sobre Espanha e um receio dos investidores em torno dos lucros das empresas do país vizinho, nos mercados de dívida a calma continua a reinar. O Tesouro espanhol continua a financiar-se com taxas de 1,5% a 10 anos, perto dos valores mais baixos de sempre, num sinal claro de que os estímulos monetários do Banco Central Europeu (BCE) estão a compensar o efeito de incerteza sobre o que aí vem: seja um governo de minoria socialista ou novas eleições.
O cenário de novas eleições continua a ser aquele que é visto como mais provável pelos analistas dos bancos de investimento. Sempre assim foi, logo desde a votação dispersa registada a 20 de dezembro. Mas novas eleições, a confirmar-se que poderiam ser marcadas para final de junho, implicariam que o país vizinho terá estado meio ano sem governo, a navegar à vista num contexto de incerteza de que falou Bruxelas. Poucas economias no mundo resistiriam incólumes ao impacto de tal impasse, e a economia espanhola certamente não é uma delas.
Nem exportando as laranjas que Rita Barberá Nolla, a ex-autarca valenciana, distribuía pelos seus amigos do PP.