— Nós? Português. 2.º e 4.º ano: Matemática! Tu, João, vem ao quadro e escreve o i minúsculo, o i de iogurte. Mariana, já disse que não é para falar. É para fazeres o exercício de Matemática. Tomem atenção que vai toda a gente ao quadro hoje! Isto é um i de imprensa, João, não quero esse. Quero melhor, mais bonito. E a seguir o u de uva, sabes qual é, não sabes?
— Professora!
— Sim, Pedro, vou já. Ana, agora és tu a ir ao quadro escrever o i minúsculo e a seguir o maiúsculo.
As frases encadeiam-se ao ritmo que Ivone Rente vai saltando das letras para os números e dos números para as letras, de um canto para o outro da pequena sala, no primeiro andar da Escola Básica de Monsanto, no concelho de Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco. Escrito assim, e para quem lê, pode parecer que está instalado o caos. A verdade é que tudo está sob controlo. A professora Ivone não tem um 10 desenhado na camisola, mas sabe bem como distribuir jogo. E não perde tempo, nem deixa que os alunos o percam. Os ponteiros do relógio marcam 11h10, os meninos vieram do intervalo há dez minutos e todos perceberam que agora é para trabalhar. Ou quase todos.
— Isto não é para estar parado, Manuel. Já fizeste o exercício? Deixa-me ver.
Manuel é um dos 19 alunos que tem aulas na escola primária da “aldeia mais portuguesa de Portugal”. A esta hora só estão 16 na sala porque os três alunos do terceiro ano desceram para ter inglês com outra professora. Restam oito alunos do 1.º ano, sentados nas mesas da frente, à esquerda da professora, cinco alunos do 2.º ano agrupados nas mesas à direita e os três do quarto ano que estão sentados atrás dos do segundo ano.
Todos juntos formam uma turma mista: alunos de vários níveis de ensino, a terem aula ao mesmo tempo, na mesma sala. Para Ivone Rente esta é uma “turma normal”, até porque em 20 anos de ensino só num deles deu aulas a apenas um nível de ensino. “Consegue-se perfeitamente conduzir 19 alunos e ter vários anos acaba por estimular os mais novos”, desdramatiza a professora do 1.º ciclo, ainda durante o intervalo.
E explica como organiza o puzzle: normalmente opta por juntar os alunos por anos de escolaridade, mas existem determinadas atividades em que se misturam todos, naturalmente com trabalho diferenciado e com um nível de exigência adaptado a cada nível. “Eles sabem que quando eu estou a trabalhar com um grupo, os restantes ficam a trabalhar e esperam.” Para ajudar a conduzir o ano letivo, Ivone Rente conta ainda com outros professores que vão coadjuvar no ensino da matemática, ou ajudar alunos com mais dificuldade noutras disciplinas.
Em 20 anos, esta era a única escola no concelho de Idanha-a-Nova onde Ivone Rente não tinha ainda lecionado. E só foi possível este ano porque a escola reabriu, depois de ter estado fechada, por ordem do Ministério da Educação do Governo PSD/CDS-PP.
Crianças voltam a Monsanto para felicidade dos pais
Ao contrário da professora, a maioria destes alunos conhece bem os cantos à casa. Os que estão no primeiro ano transitaram do jardim-de-infância, que nunca deixou de funcionar na metade mais pequena deste edifício, e muitos dos restantes alunos já tinham cá estado a estudar há dois anos, em modalidade de ensino individual. Foi a alternativa então encontrada, pela autarquia e pelas famílias, para contornar o encerramento da Escola Básica da Relva, a uns metros desta.
Acontece que o Ministério da Educação de Nuno Crato nunca reconheceu o ensino aqui praticado durante esse ano e os alunos acabaram por chumbar.
Rui foi uma das 11 crianças que ficou retida, tendo sido obrigado a repetir o terceiro ano na escola de Idanha-a-Nova, a cerca de 30 kms da terra onde vive, às portas de Monsanto. E acabou por correr bem, apesar das dificuldades iniciais de integração. No fim do ano letivo trouxe para casa um diploma, conta a mãe, orgulhosa. “Foi o melhor da escola dele! Então não fiquei feliz?”
E foi depois de terminar o ano letivo passado que começaram os rumores na aldeia de que a Escola Básica de Monsanto ia voltar a abrir portas. Os pais não podiam ter ficado mais satisfeitos.
“Quando ele ia para Idanha tinha de acordar às 7h e agora acorda às 8h. Uma hora faz muita diferença! E à tarde, para fazer os trabalhos de casa, era terrível. Ele vinha na carrinha de transporte meio embalado, já chegava a casa com um olho aberto e o outro fechado e ainda tinha de fazer os trabalhos”, conta Amélia Antunes ao Observador. Com o regresso a Monsanto, as rotinas mudaram para melhor. “Agora sai às 17h30 e às 17h35 ou 17h40 está em casa, faz os trabalhos num instante e vai logo brincar. E para mim é muito melhor porque o tenho aqui ao pé de mim”, relata, de sorriso que lhe enche o rosto.
Um semblante que se altera ligeiramente assim que o “assunto tabu” é trazido para a conversa. Enquanto vai servindo um café, uma “mini” e duas tostas mistas, no café onde trabalha, em Relva, mesmo colado a Monsanto, a mãe de Rui recorda a confusão do passado recente. Amélia Antunes confessa que “se fosse hoje, provavelmente não tinha deixado a situação arrastar-se naquele ano, porque quem acabou por pagar por tudo foram as crianças”, mas volta a afirmar que só soube que o filho tinha chumbado no dia da apresentação em Idanha, onde o matriculou por iniciativa própria, no ano passado.
É que, além do aparato mediático com que se viu confrontada ao longo do ano, Amélia acabou por ter “a noção de que o ensino não era muito exigente”. “Vi isso no final do ano, porque os livros costumam estar todos feitos e mais do que feitos e eles ainda tinham metade por fazer.”
Apesar de tudo, admite que lhe soube muito bem ter o filho “mais um aninho por perto”. E agora está de novo por perto. Rui já se tinha adaptado à escola e nem queria voltar a Monsanto. “Dizia que não queria deixar os amigos e o pavilhão onde fazia ginástica”, relata a mãe. Entretanto já se habituou e “até prefere, porque dorme até mais tarde”, afirma Amélia, enquanto solta mais uma gargalhada.
Sentada no café onde trabalha a amiga está também Maria Manuela Gonçalves, de 29 anos, que não sente uma grande culpa por ter permitido que a filha continuasse a estudar naquele modelo de ensino, apesar dos avisos do Ministério.
“Tinha a certeza que a minha filha ia chumbar de qualquer das maneiras por isso não me preocupei. E assim ficou perto de casa mais um ano.” Agora com 10 anos, a filha de Maria Manuela está no terceiro ano e, para já, tudo parece estar a correr bem. Conta até com a companhia da irmã mais nova, de seis anos, na mesma turma.
Tanto Amélia Antunes, como Maria Manuela, esperam que a escola continue aberta no próximo ano letivo e acreditam que isso aconteça, “até porque há crianças para estudarem lá”, remata Amélia Antunes.
“Quero esquecer porque para mim foi muito desgastante e doloroso”
No ano passado, quando o Observador tentou contactar o diretor do Agrupamento de Escolas de Idanha-a-Nova para o questionar sobre a confusão que estava instalada em torno do ensino individual que estava a ser praticado nesta escola, e que tinha valido o chumbo aos 11 alunos, não obteve qualquer resposta, e ainda hoje, passado todo este tempo e já com a situação resolvida, António Salgueiro é parco em palavras, mostrando desconforto.
“Eu não queria muito falar disto, para mim o passado é passado. Tenho a consciência de que, como diretor do agrupamento, fiz tudo o que a lei me obrigava a fazer. Tudo foi feito: desde contactar os pais por causa do absentismo, à comunicação à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Tudo isso foi feito. Enviámos cartas registadas e com aviso de receção”, conta ao Observador.
“Toda esta situação foi desgastante e culminou inclusivamente num processo disciplinar dirigido a mim”, revela o diretor do agrupamento, acrescentando que não chegou a ir à fase da defesa “porque aquilo não tinha pernas para andar”. “Nem sei de que é que fui acusado, porque não tive oportunidade de me defender. Foi arquivado.” “Quero esquecer porque para mim foi muito desgastante e doloroso.”
Quanto ao presente e à reabertura da escola, o diretor atribui mérito à autarquia, que considera ter tido aqui um grande papel e mostra-se satisfeito com a decisão do Governo.
“Falando como cidadão que vive numa zona destas do país, eu sou favorável a que, de certa forma, haja alguma discriminação positiva. Deve atender-se às situações, caso a caso. Isto no inverno é duro. Os miúdos começam as aulas às 9h00 e acabam às 17h30″, frisa o diretor, referindo que ir estudar para Idanha-a-Nova implicava perto de 60 quilómetros diários de estrada para as crianças.
Professora feliz, famílias radiantes, diretor satisfeito. E as crianças? “Meninos, gostam mais de estar aqui ou na escola de Idanha-a-Nova?”, decidi perguntar antes de os deixar a aprender, sem criar uma distração adicional. A resposta não tardou: “Aquiiiiiiii”. E é aqui, em Monsanto, que vão continuar a aprender até ao final do 1.º ciclo. Depois, terão de ir obrigatoriamente para Idanha-a-Nova.
(Os nomes dos alunos são todos fictícios, de maneira a preservar a identidade das crianças)