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Nelson Rodrigues: o reacionário de estimação

"O Homem Fatal" e "A vida como ela é..." são agora publicados em Portugal. Bruno Vieira Amaral recorda o escritor brasileiro, "o autor fétido agora perfumado com a água-de-colónia do consenso".

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Muito tarde e mesmo a tempo: o fundamental da obra do grande dramaturgo e cronista brasileiro Nelson Rodrigues, que morreu em 1980, aos 68 anos, começa finalmente a ser publicado em Portugal (a publicação, em 2006, de Teatro Desagradável, pela Cotovia, não teve continuidade) e logo em dose dupla, em edições da Tinta-da-China.

O Homem Fatal, com seleção e prefácio de Pedro Mexia, reúne crónicas que Nelson Rodrigues escreveu entre 1967 e 1975 no jornal “O Globo”. A vida como ela é…, com seleção e prefácio de Abel Barros Baptista, junta 60 contos publicados entre 1951 e 1961, no jornal “Última Hora”. Para já, ficam de fora as peças teatrais, talvez a contribuição mais revolucionária e arrojada do escritor, e as suas incursões pelo romance, como O Casamento e, embora originalmente publicado como folhetim no “Última Hora”, entre 1959 e 1960, Asfalto Selvagem, que ofereceu à literatura de língua portuguesa uma das suas personagens mais duradouras e poderosas: Engraçadinha.

Nos últimos anos, o nome de Nelson Rodrigues foi envolto numa nuvem de consenso, com os indefectíveis a agitar o turíbulo e os mais resistentes finalmente rendidos à qualidade literária do escritor. Esta canonização, como qualquer fenómeno de santificação literária, acarreta o risco de se apresentar uma versão de arestas limadas da sua obra. Nesta versão beata, todas as marcas fortes do escritor são como que passadas por lixívia, engomadas e, finalmente, apresentadas à família. Aí está Nelson, o escritor sem mácula, o reacionário de estimação, o autor fétido agora perfumado com a água-de-colónia do consenso.

O homem hediondo

E, no entanto, basta ler os contos de A vida como ela é… (título escolhido pelo autor e que, como conta Ruy Castro na biografia, “dava um toque de fatalidade, de ninguém-foge-ao-seu-destino”) para se perceber que a normalização das obsessões do escritor trai a essência dessas obsessões. Os contos transbordam de paixões funestas e adultérios (um tópos da época e sinal das tendências oitocentistas de Rodrigues), suicídios e homicídios, perversões e traumas, misérias conjugais e incestos, sempre (ou quase) em ambientes familiares, fora dos quais, aliás, o seu poder seria quase nulo. A mera devassidão ou o hedonismo militante não atraíam o Nelson Rodrigues ficcionista. O que o atraía era a violenta repressão do desejo e, depois, a violenta concretização do desejo.

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a vida como ela é

“A vida como ela é…” na nova edição da Tinta da China

Na devassidão não há pecado. E o pecado era o negócio de Rodrigues. No conto “Flor de Laranjeira”, o homem rejeita a amante que chega com uma “firme e desesperada determinação de pecar”. Na ótica do escritor, o pecado só existe enquanto fraqueza e nunca como fruto de uma deliberação.

Diz uma das personagens do conto “O Macaco”: “Papai, quem sabe se tanta felicidade não é pecado?” É, de certeza. Porque na felicidade, como na virtude, há sempre algo de desumano, de postiço, de falso e de precário, como acontece com o casal de um dos contos, cuja felicidade conjugal dependia de uma traição. Uma das personagens, do conto “O Justo”, é um pai de família irrepreensível e unanimemente respeitado, que exerce a sua autoridade “na base de uma virtude inumana. Seu Clementino, com efeito, não bebia, não fumava, não jogava; era sóbrio e contido até nos prazeres da mesa.” Nestes contos, uma semelhante apresentação é quase sempre sinónimo de um desfecho escabroso.

No prefácio a A vida como ela é… Abel Barros Baptista puxa por uma dessas definitivas frases rodriguianas – “A virtude é triste, amarga e neurastênica” – e junta-lhe a recomendação de um sogro ao genro: “desconfie da esposa amável, da esposa cordial, gentil”. Eis uma síntese possível da ficção de Nelson Rodrigues: só devemos desconfiar da virtude.

A sordidez que lhe interessava, e que perpassa toda a obra, é a sordidez que se disfarça sob o véu da virtude e que só um aguçado poder de observação e um profundo conhecimento da natureza humana podem detetar. No célebre conto “A Dama do Lotação”, que deu origem a um filme, o marido traído olha para a mulher “linda, intacta, imaculada” e pergunta-se: “Como é possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro?”

a dama do lotação

Sónia Braga na adaptação ao cinema de “A Dama do Lotação”, com realização de Neville de Almeida (1978)

Disfarçar talvez não seja o verbo adequado porque o disfarce pressupõe o domínio dos instintos, uma hipocrisia, e o que na maioria das vezes nos é mostrado é a dilacerante batalha interior das personagens para os reprimir. Uma batalha muitas vezes inglória. Não é raro que esses instintos duramente reprimidos expludam de forma incontrolável.

Edgar, sabendo que a mulher o traiu com o pai, “experimenta uma feroz e obtusa necessidade de vingança, de compensação. Arremessa-se com um tigre, um abutre, um javali, sobre a sogra. Agarra-a. Quer beijá-la na boca.” (“A Futura Sogra”); “Esbofeteou-a e, depois, riu ignobilmente, como se a bofetada despertasse não sei que sombria, que misteriosa crueldade nas profundezas do seu ser” (“A Humilhada”); “Então, dá nela uma fúria súbita, uma cólera obtusa e potente.” (“Excesso de Trabalho”); “Ofereceu ao marido toda a frenética voluptuosidade que não pudera dar ao quase amante.” (“Covardia”)

Ir ao fundo do ser humano

O projeto rodriguiano, se assim se pode chamar, foi resumido pelo próprio numa entrevista: “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda, acho mais importante a hediondez. O ser humano só se salva se reconhecer a própria hediondez. Eu me proponho a reconhecer a hediondez.”

Refletindo sobre A vida como ela é…, Nelson dizia que “por uma destinação irresistível, só trata de paixões, crimes, velórios e adultério” e que era a “tristeza ininterrupta e vital” (repare-se no oxímoro de uma “tristeza vital”) da coluna que a tornava útil: “uma pessoa que só tenha do mundo uma visão unilateral e rósea, e que ignore a face negra da vida, é uma pessoa mutilada”.

A virtude é, pois, uma obsessão doentia (que por vezes se expressa em escrúpulos insignificantes que se tornam centrais e absorventes, como no caso da mulher que censura o marido por bocejar à sua frente, pois esses modos corrompiam a “vida conjugal muito doce e perfeita” que idealizara para os dois, ou no da mulher, obcecada com a higiene pessoal, que exige que o marido tome mais de um banho por dia) e o que é necessário é encontrar e expor o outro lado desse transtorno de aparência virtuosa.

A mera devassidão ou o hedonismo militante não atraíam o Nelson Rodrigues ficcionista. O que o atraía era a violenta repressão do desejo e, depois, a violenta concretização do desejo.

Nelson Rodrigues injetava as suas obsessões nas personagens que, por sua vez, se contaminavam entre si, revelando o carácter contagioso e irresistível dessas obsessões. Logo no primeiro conto, “Agonia”, conhecemos Conceição, rapariga com horror a discussões, mas com um fascínio sombrio pela morte: “As fitas que acabavam mal, em morte, agonia e luto, causavam nela um duplo sentimento de fascínio e repulsa”. O noivo Alberto, apesar de toda a energia, também sucumbe à mesma obsessão, deixando-se “impressionar por essa infinita agonia.”

Em “O Canalha”, Lima adverte a mulher sobre o perigo que representa um tal Dudu, sujeito “que não respeita nem poste e que é capaz até de dar em cima de uma cunhada”. Só que Lima está tão obcecado com o rival, fala tanto dele, que Cleonice, a mulher, acaba fatalmente por se apaixonar pelo outro. Em “Feia Demais”, Herivelto, depois de muitas pressões familiares, acaba por reconhecer que a mulher com que casou é horrível. Em “A Futura Sogra”, “seu” Daniel chama a atenção do filho para as qualidades da sogra repetidas vezes até que este já nem consegue dormir com medo que “as sugestões do pai o contaminassem”.

Peruar enterros

Nenhuma das obsessões de Nelson Rodrigues será tão marcante como a da morte ou, mais precisamente, com os rituais a ela associados: caixões, velórios, funerais e o impassível rosto dos mortos. Esta fixação não anda muito longe da necrofilia. O escritor brasileiro Marcelo Mirisola escreveu o seguinte num romance: “Uma obsessão dele, o diabo do futebol (que eu abomino junto às paraolimpíadas e aos demais esportes, individuais e coletivos). Uma só pergunta: Por que, em vez de futebol, não trivializaram a NECROFILIA do Nelson Rodrigues.” (O Azul do Filho Morto, Cotovia)

Nelson Rodrigues, em 1965

Nelson Rodrigues em 1965

Os exemplos abundam em A vida como ela é…: Conceição sonha “morrer no altar, com grinalda e véu”; o cadáver de d. Honorina “parecia sorrir”; um amante escreve os versos que adornam o túmulo do marido traído; Eusebiozinho enforca-se vestido de noiva e deixa um bilhete a pedir para “ser enterrado assim”; Alaíde diz ao marido que quando ela morrer quer que o enterro saia de casa porque considera “esse negócio de capelinha um desaforo” e também o seu cadáver, no caixão, “parecia sorrir”; quando era pequena, Moema vira “uns dois ou três enterros, na sua rua, mas sem medo, numa curiosidade extática, quase achando bonito”.

A raiz desse fascínio estava na infância do autor, como confessou certa vez em entrevista: “Desde garoto sou fascinado pela morte. Em vez de ter medo, ia peruar enterro. Não tinha medo nenhum, e volta e meia me infiltrava nos velórios. Achava uma coisa fantástica a chama das velas. Hoje os nossos velórios perderam isso, é tudo luz elétrica. Uma coisa incrível, uma falta de respeito. Antigamente havia os gemidos e os gritos na hora do enterro. O enterro era apaixonante. Entrava todo mundo assim, de cara de pau. Hoje a capelinha desmoraliza a dor. Antigamente, a hora de sair o enterro era uma coisa tenebrosa.” (O Estado de São Paulo, 10/09/1978)

O homem crónico

Nas crónicas desaparecem as personagens (embora surjam figuras recorrentes, como a sua implacável e exigente úlcera) e emerge o autor-personagem, com as suas “embirrações e obsessões”, como refere Pedro Mexia no prefácio de O Homem Fatal. Não só a capacidade de observação é a mesma, como idêntico é “o génio cómico do exagero e da generalização”.

Nos contos, esse exagero de pendor melodramático, operático, embora partindo sempre de um núcleo “realista” e fatalmente triste, mostra-nos que a vida que vemos não é a vida tal como ela é mas a vida tal como a via o escritor, da perspectiva do “buraco da fechadura”. Esse carácter exagerado e folhetinesco, a exemplo de artifícios como as cartas anónimas (numa das crónicas revela: “E aí está uma marca de leituras passadas. Como se sabe, a carta anônima é um dos artifícios mais felizes do velho folhetim. […] Na altura dos meus oito, nove, dez anos, daria tudo para receber uma torpe carta anónima.”), ameaçam a verosimilhança mas iluminam a arte do grande escritor, a de distorcer um pouco a realidade para que ela pareça ao leitor mais real que nunca (sobre Pedro Páramo, a obra-prima de Juan Rulfo, alguém disse que nunca os camponeses mexicanos falaram assim, mas que depois de Rulfo parece que nunca falaram de outra maneira).

o homem fatal

“O Homem Fatal” reúne crónicas escritas entre 1967 e 1975

Nas crónicas, os artifícios são outros. Os coloquialismo, o tom digressivo, as imprecisões, as interrupções e as lembranças súbitas emprestam-lhes uma aparência de espontaneidade, de “verdade”, de confissão. “Lembro-me de antigas bronquites, de tosses longínquas, asmas nostálgicas”; “Bem me lembro da primeira vez em que fui ao cinema”; “Lembro-me de que uma das minhas invejas mortais foi um garoto”; “Lembro-me de Crime e Castigo e vejo Raskolnikov, o assassino.”; “Não sei se falei aqui do personagem de Gogol”; “Agora, passo, finalmente, a Otto Lara Resende”.

Do passado, da infância de Nelson, regressam as escarradeiras, os golpes de ar, os espartilhos, os fraques, as mulheres fatais, a banana que comia no recreio, os velhos carnavais, o jornalismo de outrora em que “quem redigia um atropelamento julgava-se um estilista”, o respeito pelos mais velhos, os padres que não faziam missas cómicas e que olhavam para o céu para falar com Deus e não para ver se ia chover. Poderíamos dizer, ao jeito do próprio, que o seu conservadorismo era de fundo asmático. No fundo, era uma celebração dos seus tempos de infância, dos sabores, cheiros e hábitos enterrados no mais fundo de si como “sapo de macumba”.

A política literária

E a dimensão política das crónicas, o seu célebre reacionarismo ideológico? Concordamos com Pedro Mexia quando escreve que à parte de “um anti-comunismo arreigado [outra herança da infância], a sua crítica mais feroz tende a concentrar-se na dimensão retórica, mais do que na substância”, apontando o dedo aos “padres progressistas”, aos “intelectuais de passeata”, às amantes espirituais de Guevara, aos que queriam fazer do Brasil o Vietname.

Nos contos, esse exagero de pendor melodramático, operático, embora partindo sempre de um núcleo “realista” e fatalmente triste, mostra-nos que a vida que vemos não é a vida tal como ela é mas a vida tal como a via o escritor, da perspectiva do “buraco da fechadura”

Ou seja, as suas crónicas políticas são mais literatura do que política. Alguns imitadores de Nelson Rodrigues – dos dois lados do Atlântico – captaram bem a pose e escolheram bem os alvos, mas falta-lhes a qualidade literária para que se elevem acima da imitação do génio capaz de arrancar frases como “hoje, o verdadeiro sábado é a sexta-feira”, “o sujeito que escreve deixa de ser ele mesmo”, “o homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza”, “hoje, somos um povo de poucas Odetes, “eu diria que, em nossos dias, a televisão matou a janela”, “ah, uma senhora ‘compreensiva’ é capaz de tudo. Se lhe servirem, num banquete, uma ratazana ensopada, não pensem que fará a concessão de uma surpresa”.

Isto não significa que não houvesse política, no sentido mais estrito do termo. Em “O Ex-Covarde”, Nelson Rodrigues conta que, certa vez, um colega de redação o abordou sobre o assunto: “Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas ‘Confissões’. É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política.”

A explicação é o reacionarismo de Nelson no seu melhor: “Eu sou um ex-covarde”. Entretanto, perdera o medo: “Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário.” E tinham sido as sucessivas tragédias pessoais – a morte dos irmãos e do pai, a doença da filha – a empurrá-lo para a coragem: “Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho.” Descobrira então que é “maravilhoso dizer tudo.” Que pena não ter podido dizer ainda mais.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015

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