790kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

ROBYN BECK/AFP/Getty Images

ROBYN BECK/AFP/Getty Images

O dia em que Washington D.C. foi invadida por um mar de "pussies" contra Donald Trump

Reportagem do dia onde centenas de milhares de mulheres protestaram contra Trump um dia depois da sua tomada de posse. Para elas, antes de ser Presidente, é um "porco misógino" e um "violador".

Reportagem em Washington D.C., EUA

Tempos houve em que a palavra “pussy”, que em inglês significa literalmente “gata” mas que é também calão para vagina, não fazia parte do glossário da política norte-americana. Tudo isso é agora passado, depois de uma multidão de manifestantes, a maior parte mulheres, ter saído às ruas contra Donald Trump. É a ele podem agradecer esta nova entrada no dicionário — afinal, foi ele que uma vez disse que agarrava as mulheres pela “pussy” sempre que lhe apetecia.

“O Donald Trump tem um jeito do caraças para organizar eventos, não tem?”, perguntou um dos vários oradores desta tarde, em cima de um palco que dava as costas para o Capitólio, onde 24 horas antes Donald Trump jurava cumprir a Constituição dos EUA. À falta de uma contagem precisa, a imprensa norte-americana fala em centenas de milhares nesta “Marcha das Mulheres” que acabou por não ser marcha nenhuma. Ao Washington Post, a organização do protesto disse que optou por não partir em desfile pela cidade devido a um número inesperadamente alto de participantes.

A comparação com a tomada de posse de Donald Trump, o grande evento do dia anterior, é inevitável. “Acabei de falar com a minha mãe ao telefone e ela acabou de me contar que na televisão estão a dizer que estão cá mais pessoas do que ontem!”, diz uma manifestante, na casa dos 20 anos, às amigas, que irrompem numa ovação só delas. Em Washington D.C., é também isso que se sente. Na Union Station, a principal estação de comboios da cidade e nas imediações dos dois eventos, era impossível circular neste 21 de janeiro com pressa. O mais provável era chocar contra alguém envergando um pussy hat — os chapéus cor-de-rosa com orelhas de gata que muitos dos manifestantes deste sábado usaram.

"Eu estou furiosa, estou cheia de raiva, sinto-me completamente frustrada por saber que este porco misógino nos vai representar durante os próximos quatro anos."
Stacy, 36 anos

Nalguns casos, a afluência de pessoas vindas de fora da cidade era maior para a “Marcha das Mulheres” do que para a tomada de posse. Na sexta-feira de manhã, no autocarro que o Observador usou para ir de Baltimore para Washington D.C., metade dos lugares estavam vazios e o bilhete custou 13 dólares. No sábado, a mesma viagem demorou mais meia hora devido ao trânsito. Tudo isto, num autocarro sem um único lugar vazio e por um preço que foi ajustado à procura: 57 dólares. Ou seja, um aumento de quase 340%.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Stacy, Becca e Lauren são uma boa amostra do alcance da “Marcha das Mulheres” e da afluência que as ruas de Washington D.C. tiveram, com pessoas a chegarem vindas de todo o país. Destas três amigas, todas viajaram grandes distâncias propositadamente para protestarem contra Donald Trump: Stacy apanhou um avião do estado do Colorado; Becca veio de comboio de Nova Iorque; Lauren apanhou um autocarro que saiu do Michigan.

Entre elas, o ambiente parece leve. Conhecem-se há vários anos, não se viam há alguns meses, e por isso trocam alguns sorrisos e até gargalhadas. Mas quando falam sobre Donald Trump o tom já não é bem esse. “Eu estou furiosa, estou cheia de raiva, sinto-me completamente frustrada por saber que este porco misógino nos vai representar durante os próximos quatro anos”, diz Stacy, de 36 anos. “É impossível imaginar pior do que isto.”

Chegaram todas hoje a Washington D.C. porque não quiseram estar na capital dos EUA no dia em que Donald Trump assumia a sua presidência. “Nem na televisão consegui vê-lo”, conta Becca, de 28 anos. “Ao início, pensei que era melhor ver, que tenho de conhecer o inimigo, que é preciso saber o que ele pensa para poder combatê-lo”, conta. “Mas passado cinco minutos desligo logo a televisão.” Lauren ouvi-o de fio a pavio. E tem uma palavra para descrever o que ouviu durante aquelas 20 minutos: “Nojento”.

“Vulva a resistência!”

Dia 21 de janeiro não foi um bom dia para a moderação na linguagem em Washington D.C. — e tampouco o foi para a imagem do Presidente dos EUA. Um pouco por todo o lado, liam-se cartazes que iam desde o criativo ao ofensivo, todos dirigidos contra Donald Trump. “Vulva a resistência!”, lia-se num deles. Noutro, um desenho de uma vagina, como costuma aparecer nos livros de ciências na escola básica. O ovário esquerdo estava normal — mas o direito, quando visto com atenção, era na verdade um dedo do meio levantado. Havia também uma cartolina onde Donald Trump aparecia como Darth Vader — e todas as suas escolhas ministeriais como storm troopers, os guardiões do lado negro da força. E outro que especulava sobre o tweet em que Donald Trump reagiria à “Marcha das Mulheres”. “Protestantes raivosas a deitar sangue das suas… sei lá. Onde é que estão os maridos delas? Deviam estar a limpar a casa. Triste!!”

Stacy não foi tão criativa quanto isto, mas a agressividade está toda na cartolina amarela que comprou na véspera. “Donald Trump é um violador”, escreveu, com um marcador preto. Para ela, não é um exagero. “Ele é tudo isto e muito mais.” Que “muito mais?”, perguntamos-lhe. Stacy prefere responder com algumas das promessas que Donald Trump chegou a fazer ao longo da campanha. “Ele quer punir as mulheres que façam abortos, quer que as mulheres que façam abortos sejam obrigadas a fazer funerais aos seus fetos quando abortarem, quer tirar-nos o planeamento familiar…”, enuncia, olhando para as duas amigas enquanto fala, como quem pede ajuda para completar a lista. Estas, em vez de a auxiliarem, abanam a cabeça em desagrado. “Ele quer acabar com os direitos das mulheres, basicamente.”

Kim, de 63 anos, não é capaz de dizer exatamente aquilo que Donald Trump quer fazer. “Não consigo, não, mas não é por falta de capacidade minha”, diz esta mulher que viajou cinco horas e meia num autocarro vindo de Pittsburgh para aqui estar. “Ele não tem ideologia, não tem princípios, não tem nada que o guie para além do que vende mais e melhor e daquilo que lhe dá mais vantagens e àqueles que se parecem com ele”, diz.

"Não é o Donald Trump que me dá mais medo. Os homens de princípios que têm uma agenda são muito mais perigosos do que assholes."
Kim, 63 anos

Assim, explica Kim, quem na verdade a preocupa mais é a equipa de Donald Trump, sobretudo o seu vice-Presidente, Mike Pence, que enquanto governador do Indiana tornou-se num dos políticos mais conservadores do país. “Não é o Donald Trump que me dá mais medo. Os homens de princípios que têm uma agenda são muito mais perigosos do que assholes“, disse, para depois sublinhar bem o que o disse: “O Donald Trump é o asshole“.

Uma manifestação como a que houve este sábado em Washington D.C. — e também um pouco por todo o país, com o Washington Post a falar de 2,5 milhões de manifestantes ao todo — pode ter um efeito inebriante naqueles que se juntam a ela, por força da catarse. Ainda assim, Kim não se deixa levar por esse sentimento que parece estar presente em muitos dos que a rodeiam. Isto porque Kim sabe que, apesar de tudo o que a rodeia, uma maioria de 53% de mulheres brancas, como ela, votaram em Donald Trump, ao contrário dela.

“É algo que eu não compreendo, por mais voltas que eu dê à minha cabeça nunca vou entender como é que uma mulher pode votar naquele homem”, diz Kim, que conhece várias que o preferiram em vez de ajudar a eleger Hillary Clinton. Algumas são familiares, outras são amigas ou colegas de trabalho. “As pessoas votam com o seu ódio, votam com as suas emoções em vez de votarem com a sua razão”, diz. “É a única explicação que encontro”, acrescenta, num tom de quem reserva dúvidas sobre o que acaba de dizer.

“Que raio de país é este?”

Jevon, de 45 anos, também guarda algumas dúvidas que, acima de tudo, são receios. Para este homem negro, natural de Saint Kitts e Nevis e que vive em Washington D.C., o facto de Donald Trump ser agora Presidente depois da forma como decorreu a campanha presidencial em 2016 é um mau sinal. “O que é que isto significa para as nossas crianças?”, pergunta, com o filho ao colo. A dois passos, a sua mulher segura a filha do casal pela mão. “Na América, todos queremos ver um bom exemplo quando olhamos para a Casa Branca”, diz.

Ao longo dos últimos oito anos, com Barack Obama, foi isso que Jevon viu e tentou mostrar aos seus filhos. “O meu rapaz podia olhar para Barack Obama e perceber que o facto de ele ter nascido com esta cor de pele não o impede de chegar a lugar nenhum desde que trabalhe e seja honesto”, disse. “E a minha filha também podia olhar para Michelle Obama e ver nela um exemplo de uma mulher que sabe ser forte e delicada ao mesmo tempo, uma mulher que junta confiança e humildade.”

"Não sei o que fazer, não sei como agir, além de continuar a trabalhar e a levar dinheiro para casa para alimentar os meus filhos e tentar ajudar a minha família. Mas sei que vou ter de fazer mais do que isso para viver na América de Donald Trump."
Jevon, 45 anos

Agora, Jevon lamenta, as coisas não serão bem assim. “Que raio de país é este que agora tem orgulho em dizer que agride sexualmente mulheres?”, pergunta.

Para já, diz que ainda é cedo para falar dos próximos quatro anos. “Parece mentira, mas ainda me estou a habituar à ideia de este homem ser Presidente”, admite Jevon. “Não sei o que fazer, não sei como agir, além de continuar a trabalhar e a levar dinheiro para casa para alimentar os meus filhos e tentar ajudar a minha família. Mas sei que vou ter de fazer mais do que isso para viver na América de Donald Trump.”

A mera referência aos próximos quatro anos é o suficiente para Stacy, Becca e Lauren, as três amigas que viajaram de três pontos diferentes do país, irromperem num longo suspiro.

Depois de expelir todo o ar que tem nos pulmões, Stacy é a primeira a responder. “Eu vou começar a escrever cartas aos meus representantes políticos”, diz. “Vou começar a escrever-lhes tantas vezes que os correios vão enriquecer à minha conta.” Na verdade, começou a fazê-lo na semana passada, quando fez parte de um “banco de cartas” dirigidas ao senador democrata do Colorado, Michael F. Bennet.

“Nunca tinha feito nada disto, mas daqui em diante não tenho outro remédio.”

Lauren, talvez por ceticismo, não se pronuncia. Já Becca, pede um favor à amiga: “Eu não faço ideia de como é que isso se faz, mas não há nada que eu queira fazer mais na vida neste momento. Depois ensinas-me?”.

– – –

Logotipo FLAD

(O Observador está nos Estados Unidos com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento)

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora