O que está em causa?

A mudança do Infarmed para o Porto tem alimentado polémicas ao longo desta semana, com a esmagadora maioria dos funcionários da agência portuguesa do medicamento a manifestar-se contra a transferência para o norte do país. Com o Governo debaixo de fogo quanto a esta questão, o tema foi abordado numa entrevista que António Costa deu à Antena1, e que é emitida este sábado.

O que está em causa é perceber se a decisão de mudar o Infarmed para o Porto já estava pensada há mais tempo, antes de o Governo ter candidatado a cidade do Porto para receber a Agência Europeia do Medicamento (EMA). Ou seja, se a deslocalização da autoridade portuguesa do medicamento não decorre de uma compensação política pela derrota da candidatura, leitura que tem sido contrariada pelo Executivo. Na entrevista à Antena1, António Costa responde o seguinte:

Seria a sequência natural da vitória da EMA, a aproximação do Infarmed. Um dos critérios importantes era a proximidade entre a agência europeia e as agências nacionais”.

Na sequência desta declaração, a jornalista Maria Flor Pedroso insiste: “A ideia está prevista há muito tempo?”. O primeiro-ministro começa por dizer: “Sim”. Ou seja, que estaria prevista há muito tempo, embora sem dizer há quanto. António Costa acrescenta, logo de seguida: “Pondo-me na situação do Infarmed, encarava [a mudança] com tranquilidade, porque a lei me protege nos meus direitos quanto à mobilidade.” E dava outros argumentos a favor da mudança, para os funcionários não se preocuparem, mas nem mais uma palavra sobre o timming.

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O que António Costa acabaria por assumir na entrevista seriam as falhas no que respeita à forma como a migração do Infarmed foi anunciada: “Porventura, a comunicação poderia ter sido de outra forma”, reconheceu o primeiro-ministro à Antena1.

Quais são os factos?

Embora haja fontes governamentais a dizer ao Observador que a ida do Infarmed para o Porto era um assunto que ia sendo falado, essa intenção não aparece vertida em nenhum dos documentos consultados, nem sequer na própria candidatura à European Medicines Agency — que vai deixar de estar em Londres em virtude do Brexit e que Portugal desejava acolher.

A acrescentar a este aspeto — que será detalhado em seguida — a presidente do Infarmed deu uma entrevista ao Público esta segunda-feira a dizer recebeu um telefonema do ministro da Saúde “às 8 da manhã do dia 21 de novembro”, a informar que tinha sido decidido “que o Infarmed ia para o Porto”. Maria do Céu Machado foi muito clara no sentido de explicar que não havia qualquer decisão a ser ponderada quanto a uma eventual mudança da sede. Só tinha ouvido uma vez falar do assunto: “Tinha ouvido dizer que o ministro tinha dito num almoço no Porto: ‘E se o Infarmed fosse para o Porto?’, que tomei como uma brincadeira”.

Este sábado, no entanto (já depois de este artigo ser publicado), o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, reforçou a ideia transmitida pelo primeiro-ministro com declarações no mesmo sentido: “Reafirmo aquilo que o senhor primeiro-ministro disse e outros membros do Governo que a decisão política, a intenção política, há muito tempo que está pensada e que está definida”.

Se a decisão estava pensada e definida, ninguém sabia, nem a presidente do organismo em causa, nem constava nos documentos públicos: aliás, estes são explícitos sobre a localização do Infarmed em Lisboa. Na página 29 da apresentação da candidatura portuguesa à EMA, apresentada à União Europeia, está elencada a distância de avião a que ficam do Porto as várias agências nacionais de medicamento: o Infarmed, identificado em inglês como National Authority of Medicines and Health Products, aparece a 37 minutos de avião a partir do Aeroporto Sá Carneiro. Ou seja, no documento oficial da candidatura portuguesa, o critério de proximidade que o Governo apresentou e que foi mencionado por Costa, considerava que o Infarmed estaria sediado em Lisboa. É verdade que, tal como António Costa afirmou na entrevista à Antena1, o critério da proximidade à agência nacional do medicamento era um fator tido em consideração no concurso. Só que o Infarmed aparecia na proposta localizado a sul e não a norte. Se a intenção do concorrente (o Governo português) era potenciar esse fator, poderia ter feito saber na proposta, que aquele instituto estaria sediad0 na mesma cidade que a EMA, caso esta viesse parar às margens do Douro. Mas não o fez.

Candidatura portuguesa à EMA nunca refere mudança do Infarmed para o Porto

Mais: num texto introdutório publicado no documento da candidatura, assinado pelo próprio António Costa, o primeiro-ministro de Portugal destaca as virtudes da cidade do Porto sem alguma vez referir que seria lá instalada a agência nacional do medicamento. Costa fala de gastronomia, da oferta cultural , do “clima excecional” e da “hospitalidade” dos portuenses. “Devido ao investimento estratégico de Portugal num novo modelo de desenvolvimento, o Porto tem importantes centros de conhecimento, de ciência e inovação que permitem à EMA garantir a qualidade do seu trabalho”, escreveu o primeiro-ministro. “O país investiu fortemente em investigação e desenvolvimento como forma de assegurar um crescimento económico sustentável e uma sociedade mais coesa”. Nem uma palavra sobre a possível deslocalização do Infarmed.

No mesmo prospeto, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, escreveu outro texto a descrever as vantagens da cidade para receber a EMA. Mais uma vez, é omisso quanto à proximidade física do Infarmed, que seria um dos fatores a considerar pelo júri: “A região acolhe várias instituições que combinam a excelência nos cuidados de saúde, investigação biomédica e inovação tecnológica com um ambiente económico e social dinâmico, que concilia boas condições de trabalho e segurança com altos níveis de qualidade de vida”.

O que o documento refere é uma mudança do estatuto legal do Infarmed, que estaria em preparação, e o reforço das capacidades do organismo para lidar com os processos de avaliação de medicamentos que serão redistribuídos a seguir ao Brexit para poder “responder à relocalização para Portugal” da EMA. A proposta portuguesa dedica um capítulo à cooperação entre a EMA e o Infarmed, destacando o prestígio do organismo português e a sua participação ativa no processo de avaliação científica da EMA. A candidatura ainda sublinha a posição de topo ocupada pelo regulador português no quadro de procedimentos de avaliação de medicamentos e na coordenação de equipas e grupos de trabalho com a EMA. E destaca a “relação próxima entre o Infarmed e a EMA” que se materializa na circunstância de dezenas de funcionários portugueses trabalharam na agência europeia, muitos deles em cargos relevantes e que foram escolhidos por processos internacionais. Mas nunca fala da necessidade de haver uma proximidade física das duas instituições na mesma cidade.

Da mesma forma, o plano estratégico do Infarmed para 2017-2019, com data de março deste ano, e homologado pelo ministro da Saúde não refere uma possível ida para o Porto.

Infarmed. Ida para o Porto não estava no plano estratégico aprovado em setembro pelo ministro

O próprio historial deste processo não dá margem para que o Governo estivesse assim há tanto tempo a pensar na mudança do Infarmed para o Porto. A polémica esteve meses instalada porque a candidatura inicial à EMA era para ter sido protagonizada por Lisboa. Mas a contestação foi tão grande, em vésperas de autárquicas, com todos os candidatos à câmara do Porto a reclamarem uma candidatura, que o Governo recuou.

Em julho, o Conselho de Ministros anunciou ter escolhido o Porto como cidade a candidatar em vez da capital do país.

Um mês depois, em setembro, o ministro da Saúde homologou o Plano Estratégico do Infarmed, sem referências à deslocalização.

Portanto, a ser antiga, a ideia de transferir o Infarmed para o Porto não poderá ser anterior a julho — quando Lisboa ainda era a solução natural para a EMA — ou setembro quando o ministro carimbou o Plano Estratégico.

Conclusão: Errado

António Costa não podia justificar a ida do Infarmed para o Porto por a “proximidade entre a agência europeia e as agências nacionais” ser “um dos critérios importantes” no concurso europeu para escolha da localização da EMA. Isto, pelo simples facto de a candidatura portuguesa nunca ter apresentado esse argumento como fator concorrencial perante as outras cidades em apreciação. Mais: na proposta que é pública, o Infarmed aparece com sede em Lisboa, para onde seria preciso os funcionários da EMA viajarem em caso de necessidade. Se havia quem tivesse a mudança do Infarmed para o Porto na cabeça — como alegam fontes do Governo — isso não permite ao primeiro-ministro dizer que a decisão foi tomada há muito tempo Primeiro, porque o Plano Estratégico da agência foi homologado há dois meses sem essa referência “estratégica”; segundo, porque a proposta entregue às instituições europeias não o previa; e terceiro porque até julho a candidata à EMA seria Lisboa, pelo que não faria sentido, nesse cenário, mandar o Infarmed para 300 quilómetros de distância.

Artigo atualizado no dia 27 de novembro às 11h54, com as declarações ao Público da presidente do Infarmed, Maria do Céu Machado, e com afirmações do ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes.

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