1. Agosto concede vagares e privilégios e o da escolha é um deles.

Como esta de poder circular fora dos impositivos perímetros da “actualidade” e de voar por aí fora. Com o mundo agora focado na actualidade do planetário “show” do Rio de Janeiro, ocorreu-me porém trocar as pistas e relvados da montra carioca por outros pulsares criativos, marca Brasil.

Claro que devo começar – é obrigatório – pela criatividade de Fernando Meireles, na abertura das próprias Olimpíadas: que dizer da vibração daquela festa, do fôlego, do guião daquela entrada em cena dos Jogos? Certamente produzida com menos meios dos já usados a Ocidente e a Oriente, mas equiparando, e eis um feito, o Brasil a qualquer um deles. Se como dizem – e parece que acham! – Deus é brasileiro, a criatividade também: corre-lhes no sangue.

Tão forte e tão intensa que me desafia a que a conte brevemente (sempre gostei de contar) e a verdade é que o farei com devoção. A palavra pode espantar, afinal o génio sopra em tantas geografias… Sucede é que esta criatividade que irrompe na minha língua com o ímpeto e a liberdade de cavalos selvagens, para depois se materializar na música, nas letras, na ciência, nas artes, na tecnologia, reclama naturalmente um estado parecido com a devoção, face a tamanho golpe de asa. E que me perdoe quem não ama o Brasil ou prefere esgotá-lo na sua aterradora corrupção, em vergonhosos desequilíbrios sociais ou nos seus deploráveis episódios políticos. Apesar disso que é brutal e ao lado disso, há outro Brasil. Prodigiosamente criativo.

2. Da última vez que lá estive, há poucos meses, os prodígios, como habitualmente, seguiam o seu curso e seguiam-se uns aos outros. Não eram tanto os novos museus, as praças roubadas ao mar, os arrojos arquitectónicos da encenação urbana dos Jogos Olímpicos. Eram, de certo modo, os prodígios de sempre, cujo dom de se renovarem multiplicarem e reproduzirem, vai -sorte nossa – até ao infinito. O primeiro que contarei chama-se “Chico Artista Brasileiro” e é um (felizmente) longo documentário sobre Chico Buarque. Feito por Miguel Faria, realizador com longa caminhada já andada, (“O Xangôr de Baker Street”, por exemplo) e produzido por seu primo Bruno Faria, viajamos com um brilhozinho de felicidade no olhar e a curiosidade acesa, pelos passos da vida do compositor e cantor. (E escritor: lembram-se da maravilhosa sonata que era “Leite Derramado?”).

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“Chico” é feito de memória. Da infância, família, amigos, militância politica, amores, música, músicos, poetas, vidas, casas, tournées. Diferente daquele que conheci um dia em Lisboa mas talvez estivesse farto de jornalistas.

Mas quanto talento no desenrolar do novelo da sua vida, quanto ritmo e não só musical, quanta inteligência no contar deste protagonista da vida brasileira dos últimos cinquenta anos de que foi, cultural e civicamente, um “activo” fundamental.

Os primos Faria e a sua produtora independente “1001 Filmes”, já nos tinham dado “Vinicius”, outro presente que aqui há uns anos fez Lisboa explodir em aplausos, quando foi exibido no São Jorge. Segundo ouvi da própria produtora, parece haver já “negociações a correr para a vinda a Portugal deste Chico, em carne e osso e vida. Oxalá.

3. Também não foi há muito que o Brasil se emocionou com um livro sobre outro génio das artes de palco, Marília Pera, que nos deixou em 2014. Nascida num camarim – pais e avós eram actores, ela seguiu-lhes naturalmente o pisar e a vocação. A minha geração e a que se seguiu conheceu-a bem (palco, cinema, televisão, music hall) e como poderia esquecê-la? Marília, estou certa, tem lugar cativo naquela frisa onde no além, seja lá ele onde for, se sentam aqueles perante os quais nos curvaremos sempre. Pela inspiração, sim, mas por mais: o dom da graça, a inteligência do verbo, a sensibilidade, a intuição, a beleza, a elegância. Era o caso de Marília Pera e do seu transbordante talento para ser, em cima de um palco ou num écran, quem lhe pedissem que fosse. Portugal sabe-o bem, viu-a nas melhores novelas ou quando aqui actuou mais do que uma vez.

Um dia, na apresentação de um livro da também premiadíssima mas indefinível Nélida Pinõn (quem a leu sabe que ela nunca será “definível”), Marília disse-lhe que gostaria de contar – lá está, contar – a saga da sua incrível vida, ininterruptamente vivida em palcos e estúdios, dentro e fora do Brasil. Nélida, grande apreciadora da actriz, fez questão de o prefaciar, produzindo dali a pouco a “Genealogia da Arte” que abre uma substancial fotobiografia da actriz. Mas com que cuidado estético, rigor, sabedoria, ela foi feita. Cada linha e cada foto deste livro apenas simplesmente chamado “Marília Pera – e que ela ainda desfolhou com um agrado cansado nas ultimas horas de sua vida – está à altura da Marília de que me lembro.

E de quem o Brasil continua com saudades.

4. Um dia ia pelo Chiado e passei pela Vista Alegre. Parei, estupefacta: o Brasil estampado naqueles pratos que enchiam a montra de luz tropical? Que traço era aquele e que louça era aquela? Ah, era da “Olhar Brasil”, a marca criada por um arquitecto e designer brasileiro que já colaborara com a Vista Alegre mais que uma vez, criando em exclusivo duas colecções para a casa.

Conheci o arquitecto. Chama-se Chicô Gouvea , nome profissional de Francisco Soares Gouvea, vive no Rio e conversámos um dia na sua casa da Gávea. Sempre quis ser arquitecto. Em pequeno “seus brinquedos sempre foram jogos construtivos, coisas de montar, maquetas”. Mas como desenhava muito, hesitava: Arquitectura ou Belas Artes? Venceu a primeira e depois “o tempo encaminhou-o para a arquitectura de interiores”. Chicô Gouveia escolheu a melhor parte: “poder projectar uma casa como arquitecto mas levá-la até ao seu interior…” Mais do que os mestres que terá tido ou idas influências que terá sofrido, a grande inspiração “partiu sempre da curiosidade no olhar”. Com ela foi criando e depois amadurecendo uma “estética própria” que hoje se confunde com a sua assinatura.

Porque falo dele? Primeiro porque é bom e seus trabalhos têm esse toque, inconfundível e cintilante, da criatividade brasileira. Segundo, porque ama genuinamente Portugal. A sua descoberta e consequente “paixão por Lisboa”, levaram-no a comprar casa. Orgulha-se de ter hoje uma morada portuguesa, receber encomendas, conhecer oficiais do mesmo oficio. E que a “Olhar Brasil” – criação de imagens para objectos e utilitários, desenhos de móveis, etc. – que ele “inventou” a meias com Paulo Reis, seu sócio nesta aventura, tenha já algumas parcerias com o nosso país. Ou seja: passar a trabalhar “também em Portugal e para Portugal,” é mais que uma ambição para Chicô: é um objectivo.

5. Leonor Xavier há muito que percebeu tudo isto que tenho vindo a contar. É certo que viveu longos – e decisivos – anos naquela quente paragem mas podia, como tantos portugueses que por lá passaram e regressaram como se voltassem da Figueira da Foz, ter voltado incólume do Brasil. Ou ter tido a infelicidade de passar ao lado da sua “essência”. A reedição do seu livro “Portugueses do Brasil e Brasileiros de Portugal” (Oficina do Livro) mostra-nos o contrário: Leonor teve, desde o início, a curiosidade e a imaginação de querer mais e conhecer melhor. E fê-lo mesmo. Tendo-se munido, claro, desse fundamental instrumento de navegação que é o critério para escolher os seus diversos interlocutores. A leitura destes diálogos também nos indica – a mim e a quem ama e “pratica” assiduamente este outro lado do Atlântico – que os Brasileiros podem, com a naturalidade de quem respira, ser um rio sempre a correr para um mar sobressaltado de talentos.

Exactamente como Fernando Meireles nos mostrou uma noite destas.

6. Aqueles de quem hoje aqui dei brevíssima conta, Chico Buarque, Miguel e Bruno Faria, Marília, Chicô Gouveia (como há meses aqui já contara Pedro Correa do Lago, singularíssimo homem de cultura) são, gloriosamente, o Brasil no seu melhor.

Gosto deles por isso. E de Agosto, que me soltou para contá-los um bocadinho.