O Relatório do Grupo de Trabalho sobre a sustentabilidade da dívida, recentemente divulgado, é um dos documentos políticos mais significativos do último ano e meio. Porquê? Porque assume que são necessárias medidas de consolidação orçamental – embora recuse que estas surjam sob forma de políticas de austeridade sobre os cidadãos e os agentes económicos. Porque reconhece a necessidade de ajustar as políticas económicas e orçamentais ao objectivo de tornar a dívida pública sustentável. Porque aceita que uma solução efectiva para o problema da dívida pública passa, desde logo, pela negociação europeia e pela acção do Banco Central Europeu. Porque sugere, para essa negociação europeia, um caminho de extensão dos prazos de pagamento da nossa dívida. No fundo, porque estabeleceu como base de partida aquilo que há muito se tinha por certo mas que, no discurso político à esquerda, ainda se questionava.

Pondo de parte a problemática questão de recorrer a mais dividendos do Banco de Portugal para aliviar dívida, nada há de surpreendente nas conclusões do relatório. Excepto quem fez parte da sua elaboração – elementos do Bloco de Esquerda, do PS e do Governo que, numa longa negociação, encontraram um compromisso que poderia (no geral) ser subscrito por PSD e CDS. Afinal, se for esse o entendimento das autoridades europeias, quem se oporá a que a nossa dívida passe de 15 para 60 anos, a uma taxa de juro de 1% (em vez de 1,8%)? Ninguém. Mas, para o Bloco de Esquerda (e algumas figuras do PS mais à esquerda), isso é uma revolução: aceitar uma negociação a este nível no contexto europeu implica, indirectamente, a aceitação das regras dos tratados europeus.

Há apenas dois anos, este compromisso por parte do Bloco de Esquerda teria sido impossível. Esses eram os tempos em que o BE apontava o dedo acusatório à UE de Merkel, aderia a manifestos pelo perdão da dívida, desprezava a política monetária de Draghi e elegia como rota política o confronto trilhado pelo intempestivo Varoufakis. Desde então (quase) tudo mudou e, ao que parece, alguns raios de realismo começaram a iluminar a mesa de reuniões dos bloquistas. E, chegados aqui, a compreensão desta transição identitária do Bloco de Esquerda e dos seus efeitos é fundamental para a compreensão dos tempos políticos que hoje vivemos.

O primeiro efeito é a (ligeira) aproximação do Bloco de Esquerda ao liberalismo democrático do projecto europeu. Não é uma adesão ideológica, sublinhe-se, até porque ainda recentemente os bloquistas se aliaram, em França, à campanha presidencial de Mélenchon, líder da esquerda radical e eurocéptica. É uma adesão por conveniência, ainda por consolidar e meramente pragmática, de quem se mostra disposto a ceder na sua identidade ideológica em troca de acesso ao poder. E isso é positivo, já que é, de facto, essa a regra da negociação e do jogo democráticos. Ao assinar o relatório sobre a sustentabilidade da dívida pública e ao fazer-se representar ao mais alto nível por Louçã, a mensagem do partido é clara: o Bloco de Esquerda está a provar a sua disponibilidade e maturidade para ser um parceiro de coligação fiável num próximo governo do PS.

O segundo efeito é, por contraste, o isolamento do PCP. A inflexibilidade dos comunistas não está apenas na recusa em integrar o Grupo de Trabalho que elaborou o relatório. Está, fundamentalmente, na rejeição absoluta de cedências ideológicas: para o PCP, o caminho passa pela exigência de uma reestruturação directa da dívida pública portuguesa e pela suspensão do pagamento de parte da dívida. Pela ruptura, portanto. Os comunistas não abdicam de identificar o projecto europeu como inimigo do interesse nacional e insistem nas virtudes das soluções implementadas nas latitudes da América Latina. O que é que isto significa? Que, no desenvolvimento de soluções políticas para os desafios da governação, o PCP ficará cada vez mais posto de parte, assistindo ao reforçar da parceria (e futura coligação) PS-BE. Para inevitável desconforto de todos na geringonça.

Este relatório sobre a sustentabilidade da dívida pública assinala um ponto de viragem. Receava-se, quando António Costa formou governo sob apoio parlamentar da extrema-esquerda, que esta arrastasse o PS consigo para o radicalismo eurocéptico. E discutia-se a possibilidade de, às custas dos socialistas, o Bloco de Esquerda crescer e ocupar mais espaço eleitoral. Em ambos os cenários, aconteceu o contrário. O que, de certo modo, é uma boa notícia: é sempre positivo para o sistema político quando um partido de protesto, como até agora foi o Bloco de Esquerda, sobrepõe o pragmatismo à ideologia e suja as mãos com os dilemas concretos da governação. Há uma coligação PS-BE na forja. E isso, no actual contexto político, implica deixar progressivamente o PCP de fora. Pode até faltar ainda muito tempo para eleições legislativas, mas já está uma guerra prestes a rebentar na geringonça.

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