1. Idade. Tempo sobre veredas e socalcos, tempo sobre a pedra e a terra das quintas que não são iguais a nenhumas outras, nem querem dizer o mesmo. Aqui são talhadas no sobressalto e na agrura. Vinho e suor, glória e lágrimas. O Douro é isto. Um património de mel e de fel.

Vim de lá agora, repetindo o gesto de voltar sempre. O mesmo silêncio quieto, a mesma paisagem que nos submerge, a mesma beleza que nos estonteia.

Mas por de trás daquela água que passa e corre cá em baixo, espelho liquido entre montanhas, ameno e amável, mas também intempestivo e traiçoeiro, quanta vontade daquela de antes morrer que desistir. Gerações disto. Uma saga antiga, uma grande aventura, uma civilização dentro da nossa.

Tanta história, tanta gente. O Douro, um ex-libris.

2. À roda de uma grande mesa e em alegre convivialidade, ouço a história de uma dessas quintas. Séculos de resistência e persistência, mitos, paixões e filoxeras, boas colheitas, más colheitas, boa fortuna e má fortuna. A história da Quinta do Vallado foi escrita pelos descendentes de Dona Antónia Ferreira, e tem há dez gerações o mesmo sangue e o mesmo apelido. Comprada por António Bernardo Ferreira, celebra este ano três séculos. A efeméride teve um vinho superlativo a celebrá-la, um Porto de 1888, agora engarrafado, que a nossa mesa teve o privilégio de olhar, beber e saborear. E fiquemos por aqui pois nunca seria capaz de descrever nem o perfume, nem a cor, nem o aroma desse vinho e não só por óbvia falta de competência na matéria mas por respeito, pudor talvez. Não acharia adjectivo à altura nem o tom adequado, se é que o há, perdida como fiquei e ainda estou, num novelo de emoções trazidas pelo significado deste gesto e pela dimensão do seu próprio espectáculo. De sua graça ABF1888 (iniciais de António Bernardo Ferreira), adivinha-se longa duração na memória gustativa e na outra, dos provadores que aquém e além mar, já esperam por ele.

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3. Há mais quintas, são aqui como uma impressão digital na memória da paisagem e sem elas a história do Douro não se escreveria. Serão mais famosas umas, mais fartas de vinha e vinho, outras, com maior alcance histórico umas que outras. Mas todas unidas por uma espantosa crónica comum de luta e lutos e pelo mesmo sobressaltado passado.

Mas agora trata-se do futuro e foi isso que lá vi. Pujante e arrojado, saindo das quintas para o mundo. Souberam ser os marcos da mudança (quase) radical que desde o final dos anos oitenta do século passado varreu de vento (quase) vertiginoso as encostas e os socalcos da paisagem. No Douro — ou em parte dele — houve a aguda consciência de que alguma coisa teria que mudar para que conservando o essencial de uma herança e de um património únicos, se achasse rasgo, meios e mãos para mudar. Mudaram-se hábitos, modelos, critérios, prioridades. Outra filosofia, maior fôlego, uma visão feita de objectivos que assegurassem chão sólido por de baixo das vinhas. E com isso, fortificando -e agilizando – esse “acreditar” de alguns produtores no alto potencial dos vinhos de mesa, uma revolução. Depois houve alavancas , surgiram fundos, fizeram-se leis, desbravando um novo e melhor caminho. Como por exemplo a aprovação de legislação que passou a permitir o início da exportação do vinho do Porto a partir do Douro e não exclusivamente a partir das casas de Gaia, como até aí e eis um bom exemplo.

Criaram-se marcas, assentes na ciência, na inovação, na alta tecnologia, e nalguns casos, no insubstituível valor de um nome de família. Como no Vallado (mas há mais bons exemplos) onde após a venda da Ferreirinha, os descendentes de D. Antónia Ferreira, se lançaram também eles no futuro. “Ou se desistia, ou se criava uma marca” diz-me João Álvares Ribeiro, CEO — e alma e motor — da empresa. Como por aquelas paragens não se desiste, começava-se ali, como em muitos outros lugares durienses, uma outra vida.

Uma revolução, sim.

4. O mundo continuava a girar, mas mudavam vontades e curiosidades: viajar passou, nas últimas duas décadas, a significar outros portos de aventura e descoberta, como se o ar do tempo reclamasse -e reclamava – um turismo alternativo. Percebendo o poder de sedução desta nova fórmula turística e a atracção de novos públicos que ele pressupunha, as quintas abriram as suas portas: hospedagem refinada, mesa gastronómica, cenários invulgares. Uma espécie de certificado de qualidade assegurada para o enoturismo que ali nascia. Por entre verdes vinhedos e paredes antigas pintadas de branco ou ocre, com o rio Douro ou o Corgo em fundo, viajantes e passantes ganharam novas moradas. Visitei muitas, estive em algumas, voltei agora a uma delas, pela segunda vez este ano, sorte minha, privilegio do sitio. Um ninho de águia, oásis escondido, arrojadamente debruçado sobre a água. Chama-se Casa do Rio e foi lá que se provou o já mítico ABF1888. Sim, já o disse, o Douro é um ex-libris. O nosso melhor ex-libris. (Partilho-o, ex-aequo, com os Açores, ilhas de assombro que também muito amo e conheço e que ano após ano, palmilho e calcorreio). Mas para uma cidadã a quem o rio Douro não corre nas veias e sem raiz na beleza e rudeza daquelas paragens, a paixão foi fulminante: até à casa alugada desdobrando-se em socalcos até ao rés da água, foi um ápice. A casa já lá vai mas com poiso ou sem poiso, de comboio ou barco, de carro ou de mota, o apelo, telúrico e esplendoroso, mantém-se, desde o primeiro dia, o mesmo. Uma graça de Deus.

5. Reencontro esse mesmo apelo e essa graça, inteiros e intactos, nas páginas do novo livro de Gaspar Martins Pereira. Historiador e professor, estudioso do Douro, conhecedor infatigável dos seus cantos e segredos e cronista maior de uma saga ancestral da nossa História -conta-nos desta feita a história da Quinta do Vallado. Assim mesmo se chama a nova obra que é também um dos mais belos objectos editoriais que me lembro de ter visto (e tem prefácio de António Barreto, homem de costela duriense e olhar lúcido sobre esta história).

Gaspar Martins Pereira, que já nos contara a Quinta de Roriz, detém-se agora noutra geografia e noutra casa: um fresco admirável que abarca os antigos proprietários antes de lá aportarem os Ferreiras, demorando-se depois nessa singularíssima família e no seu império vinhateiro, até desaguar nos dias de hoje: primeiro com Guilherme Alvares Ribeiro e Jorge Cabral Ferreira que há vinte e tal anos semearam o futuro para o deixar como herança nas mãos da geração actual; e depois com João Alvares Ribeiro que hoje lidera e opera, coadjuvado pelos seus primos, ambos Franciscos, um Ferreira, o outro Olazabal.

6. Terão percebido que falei de outro Portugal. E de boas cepas humanas. Gente tenaz, amante do risco, praticante do progresso e militante do país. Nos dias sombrios que correm por esse mundo fora, foi um luxo ter capturado o sol dessa esplêndida colheita.