Passavam às centenas. Quando interrogados pelos jornalistas sobre a razão daquele caminhar mais do que um responde com um lapidar “É uma fé que nós cá temos!” Falo de Fátima obviamente.

Numa mistura de voluntarismo a que não foi alheia alguma inconsciência meti ombros à tarefa de fazer um documentário e oitenta episódios de dois minutos sobre Fátima, entretanto exibidos pela RTP.

O ponto de que parti era aquela gente que a 13 de Outubro de 1917 olhava meio pasmada para o sol. Uns tinham barretes, outros chapéus, lenços, xailes… que analisados em detalhe davam conta de que uns se vestiam à moda da Beira, outros do Minho… Havia gente descalça (e tudo aquilo era lama!), gente que ainda conseguiu arranjar um macho ou um burro em Chão de Maçãs. Outros vieram a pé.

À medida que avançava na pesquisa ia encontrando outros rostos, os trajes regionais desapareciam e os automóveis chegavam. O que era uma charneca urbanizava-se, o santuário configurava-se como um território em constante mutação e sempre, mas sempre pessoas passando continuamente, olhando os fotógrafos e os jornalistas com a auto-suficiência ditada por daquela fé que declaram ter. Lá, consigo.

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Não se percebe Fátima sem atender a esta expressão “que nós cá temos” para definir um conjunto de valores, no caso religiosos, enquanto valores que se têm (ou tinham) independentemente do que estava oficialmente instituído. Nós temos uma fé. Uma fé que em parte coincide mas não se esgota na grelha da liturgia católica. É um assunto nosso. Deles. Não o explicam nem pedem explicações. Mas é esse “lá” dessa fé que definem como sua que se constitui como o espaço de afirmação perante o Estado e a sobranceria quando não a arrogância das elites.

Os católicos portugueses tinham assistido sem grande reacção aos ataques à sua igreja, à prisão de alguns padres e às perseguições aos bispos. Às vezes reagiam mas a revolta essa só chegava quando o anti-clericalismo do Estado os impedia de exercer essa fé que tinham consigo. E assim o mesmo país que parecia aceitar com fatalismo o afastamento dos bispos das respectivas dioceses enfrentava as autoridades para continuar a ter as suas procissões, o toque dos seus sinos e não abdicava de todos os rituais inerentes a um funeral católico. É desse país e dessa fé que “nós cá temos” que nasce Fátima.

É também daí que advém o monumental desencontro que teve lugar em Fátima entre o povo e as élites. Estas, sobretudo nas suas vertentes mais revolucionárias, suspiraram todo o século XX por movimentos de massas e tiveram um, gigantesco, poderoso e contínuo, ali à sua frente mas preferiram olhar para o outro lado. Aliás dizendo-se boa parte dessas élites defensoras de um maior protagonismo para as mulheres, ignoraram olimpicamente a presença das mulheres em Fátima – até Lúcia lhes pareceu desinteressante! – e nem sequer se interessaram por esses grupos tantas vezes quase exclusivamente femininos que durante vários dias, logo nos anos 30 e 40, deixavam as suas obrigações quotidianas para ir a Fátima.

Quanto às élites católicas há muito que esperavam por um facto que galvanizasse os católicos em torno da sua igreja mas Fátima estava longe de corresponder ao sinal por que o cardeal à época das aparições dom António Mendes Belo esperava para fazer esse ressurgimento.

Entendessem Fátima como um sinal do céu ou uma manobra urdida por alguns obscuros padres da região, era consensual entre essas élites que Fátima nunca seria Lourdes.

Quando, a partir de 1921, dom José Alves Correia da Silva, bispo de Leiria, desencadeia todo o conjunto de iniciativas que levarão a Igreja não apenas a assumir Fátima mas também e sobretudo a organizá-la – o que entre outras coisas implicou a saída de Lúcia de Ourém para um destino desconhecido da maior parte onde mudará de nome e será proibida de falar de Fátima – de modo algum se encerrou o capítulo da tensão entre a Igreja e a religiosidade popular.

A rejeição pelos peregrinos da magnífica imagem de Nossa Senhora encomendada pelo santuário ao escultor Teixeira Lopes (relegada para a Reitoria), preferindo-lhe a bem mais popular imagem feita pelo santeiro Thedim (a que se encontra na capela das Aparições) é um desses casos. Outro foi o projecto obviamente nunca concretizado de demolir a Capela das Aparições, nascida do voluntarismo e do gosto da camponesa Maria Carreira, substituindo-a por um monumento mais digno e com assinatura arquitectónica, para o qual até foi encomendado um painel – encantador por sinal – ao ceramista Jorge Barradas. Aliás é em torno da capela das Aparições que se regista uma das maiores mobilizações espontâneas de que haverá memória em Portugal: a 6 de Março de 1922 a capela é objecto de uma atentado terrorista. Logo a 13 de Março, uma escassa semana depois do atentado, confluem milhares de peregrinos para Fátima. A 13 de Maio teve lugar uma gigantesca peregrinação. Nunca nada de semelhante se vira por causa da profanação das igrejas.

Dos sentimentos contraditórios gerados pelos excessos de que o povo que se dizia católico era capaz em Fátima versus a indiferença que manifestava face à igreja dão bem conta as palavras que Lúcia regista nas suas memórias como tendo sido proferidas pelo padre Manuel Marques Ferreira, pároco em Fátima à data das aparições: “Para que vai essa quantidade de gente prostrar-se em oração em um descampado, enquanto que o Deus vivo, o Deus dos nossos altares permanece solitário, abandonado no tabernáculo? Para quê esse dinheiro que deixam ficar, sem fim algum, debaixo dessa carrasqueira enquanto que a igreja em obras não há maneira de se acabar, por falta de meios?”

Perceber Fátima implica entrar num universo de contradições em que o mesmo povo que deixava e deixa vazias as igrejas daquele que diz ser o seu Deus percorre quilómetros para ir ajoelhar num local onde nem sequer todos os que ali acorrem e rezam acreditam que tiveram lugar as aparições.

Quer na sua improbabilidade quer na coexistência entre esse algo que nós cá temos com o que dizem que devemos ter e ser, Fátima é uma história portuguesa que não por acaso tem na procissão do adeus o seu momento mais identitário. Ao contrário do que acontece com a procissão das velas, a procissão do adeus não foi importada doutros santuários marianos. Terá sido em 1925 que se assinalou pela primeira vez a realização da procissão do adeus: nesse ano, 1925, a missa da peregrinação de 13 de Maio começara a celebrar-se no pavilhão dos doentes, o que obrigou a que a imagem viesse da capelinha das aparições até esse pavilhão e que depois de terminada a missa a imagem regressasse à capela. Foi então que se viram a ser agitados os lenços brancos – esses lenços que os portugueses voltaram a tirar do bolso quando à beira do Tejo viam os barcos partir com soldados para a guerra – enquanto a imagem fazia esse percurso. Rapidamente se passa a falar de procissão do adeus. E do adeus ficou até hoje, crescendo na sua emotividade e nas suas possíveis interpretações: marca de religiosidade popular e símbolo de um país que nesse comovido adeus celebra também esse modo de ser e de sobreviver que se chama saudade.

Discutir a fé faz tanto sentido quando discutir a Arte: faz parte das sociedades humanas. E a “fé que nós cá temos!”, essa fé que criou Fátima, faz parte da sociedade portuguesa.

Ps. Depois de anos a anunciar apocalipses sociais, subúrbios em chamas, multidões inanimadas pela fome, andava dom Januário Torgal Ferreira mediaticamente sumido até que Nossa Senhora de Fátima o tirou de tal recato (ainda duvidam de milagres?). Isto para dizer “Escandaliza-me que as pessoas só rezem àquela imagem, que se despeçam dela a chorar, na Procissão do Adeus. Eu nunca me despeço de Nossa Senhora, porque ela está sempre comigo. Aquilo para mim não é nada, é um pedaço de barro!”

Valha-lhe Deus, senhor dom Januário, e Nossa Senhora que, segundo diz, sempre o acompanha o que não é certamente o menor dos trabalhos da Mãe de Cristo! A imagem é de madeira, de madeira dom Januário!!! E tem uma história que me abstenho de contar porque o texto já vai longo mas que o senhor dom Januário ainda vai a tempo de aprender. Acredite que lhe fazia bem.