O medo tem má fama. O que se percebe. Quem gosta de andar por aí, rente às paredes, com o coração tomado de palpitações, e as pernas e os joelhos e as mãos e os braços e a voz e o lábio superior tudo a tremer, e os dentes a baterem uns nos outros? Quem gosta de ficar incapaz de agir, em estado de estupor, com o desejo único de fugir e sem o conseguir fazer, preso ao chão, face a um mal destruidor, real ou imaginário? Por mim, há bem melhores momentos da alma e do corpo do que esse, e o melhor é deixar a coisa para a memória dos pesadelos da infância.

Mas há algumas considerações positivas a favor dessa emoção, como agora se diz (até ao século XIX dizia-se, bem melhor, paixão). Apesar de tudo é uma das nossas emoções principais e praticamente não há lista que psicólogos e filósofos façam delas que não a inclua entre as primeiras. E, se está aqui em nós, deve ser por alguma coisa. Alguma utilidade terá para a nossa vida. E, se virmos bem, tem, e tem-na sob vários aspectos.

Até sob o ponto de vista do conhecimento a tem. O medo incita-nos a evitar objectos que nos provocam desprazer ou, pior que isso, a destruição do nosso ser. Pode ser ditado pelo juízo e perfeitamente racional. As emoções não têm que ser forçosamente irracionais, muito pelo contrário. Podem-nos ajudar a negar e a fugir, quando é muito conveniente negar e fugir. Há ocasiões em que não é particularmente sábio afirmar nem correr em direcção a certas entidades. Nunca apanhei um tsunami pela frente, mas algo me diz que uma profunda emoção me aconselharia bem, nesse caso, o que fazer.

Claro que o medo pode dar para o torto. O jovem Sartre tinha uma ideia que, se não é verdadeira, merecia sê-lo. Os desmaios provocados pelo medo correspondem a uma negação da realidade. Se, ao dobrar uma esquina, alguém encontrar um simpático tigre de Bengala, enérgico e cedendo aos terríveis instintos com que a generosa natureza o criou, o mais provável, se tiver tempo, é desmaiar (não digo, evidentemente, que me acontecesse a mim – estou certo de que não, desde que vi o último James Bond com Roger Moore, onde aprendi o que se deve fazer nessas situações). Ora, o desmaio é o processo mais à mão para negar a existência do tigre. Não será uma solução com resultados futuros sólidos, mas na altura é o que se pode arranjar. Há, no entanto, negações com efeitos mais duradouros, medos e fugas de utilidade comprovada que nos podem ajudar .

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E que dizer das artes? O medo, se imaginado à distância e em confortável segurança, faz maravilhas. Nem é preciso falar dos filmes de terror, um género perfeitamente nobre e quase tão antigo como o cinema, que sempre me pareceu um bocado pedante desprezar. Não digo que ouvir Bela Lugosi transilvanicamente dizer, no filme de Tod Browning, “I never drink… wine” seja de gelar imaginariamente a espinha. De facto, o efeito arrisca-se a ser exactamente o contrário. Mas, se calhar para minha vergonha, ainda há umas partes do Exorcista, quando a criancinha começa a rodar a cabeça com aquela vozinha assaz curiosa, que me provocam emoções particulares que se enquadram genericamente na categoria que nos ocupa. É verdade que sou um espírito aberto em matéria de filmes: no outro dia descobri que até gostava do Love Story, o que pode querer dizer muito.

Mas enfim, em mais altas paragens também há lugar para o medo. Na tragédia grega, pelo menos de acordo com o seu intérprete mais consagrado, os espectadores, que se encontram em segurança, experimentam medo que lhes aconteça a mesma coisa que a Ajax ou outro herói trágico qualquer. Não é assim tão difícil imaginar que nos passe pela cabeça que um qualquer grupo de cidadãos nossos conhecidos constitui, de facto, um rebanho de ovelhas prontas a serem degoladas. Moralmente, até parece que, junto com a compaixão pelo sofrimento do herói quando descobre o que fez, a coisa faz bem, e as paixões podem transformar-se em práticas virtuosas.

Isto para não falar do sublime na natureza, que se descobre igualmente através de um temor confortavelmente experimentado à distância e em segurança. Para retomar, adaptando-o, um exemplo célebre, uma furiosa tempestade no mar não é certamente sentida com prazer se estivermos entre duas grandes ondas num frágil barquinho, mas, se a virmos do ponto de vista privilegiado de uma grande janela, com a lareira da bela casa muito crepitante, e com um cognac na mão e a mulher amada – imaginem, para a imagem ser forte, Scarlett Johanssen – amorosamente encostada a nós, tudo é muito diferente. Tudo fica muito sublime assim. E podemos por-nos a pensar, com grande satisfação, na nossa destinação moral.

E o medo em política? Aí, a utilidade é ainda mais indiscutível. É verdade que há, neste capítulo, adeptos da adversa escola do entusiasmo. Mas normalmente a coisa aí dá para o torto. O medo é muito mais sábio em política, até porque, por exemplo, nos ajuda a decidir em quem não votar: naqueles que nos ameaçam com uma tempestade que nos entre pela janela dentro. Por isso, francamente, não percebo o desprezo em que a emoção em questão é tida neste domínio. Parece-me, pelo contrário, uma emoção, pelo menos em certos casos, muito racional.

Não estou a dizer, é claro, que tenha passado o tempo antes destas eleições com as pernas a tremer e a imaginar António Costa com a cabeça a rodar freneticamente e a pronunciar, com voz horrenda, temíveis frases em línguas mortas sugeridas pelos seus avisados conselheiros. Seria irracional. Mas já não é irracional ter tido medo do que anunciava a sua errática campanha. E confesso que esta sua recente peregrinação revolucionária pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda também não parece propícia a inspirar muita segurança. Quem sabe se não lhe passa um grande transtorno pela cabeça e não nos toma a todos, como aconteceu ao outro, por um rebanho de ovelhas, agindo em consequência? E só se dá conta do que fez tarde demais? O medo, desta vez real, e por nós e não por ele, cá está. Mas não sobrará ninguém para a outra emoção, a compaixão. Por isso, convém que o medo nos leve a lembrar-lhe, e aos que lhe são próximos, os riscos para todos do que ele anda a fazer.

Por todas estas razões, falta cruelmente por aí quem faça o elogio desta antiquíssima paixão. O que se leu antes não passa de uma pequena introdução a alguns dos seus méritos. Ou, como dantes se dizia em subtítulos de livros geralmente chatos, de modestos subsídios para a sua compreensão.