Frases assassinas têm ecos letais. Provocam estilhaços que também atingem quem as profere. Não há volta a dar. É uma lei do universo. Mais tarde ou mais cedo, o eterno retorno funciona e é fatal. O tristemente célebre taxista Jorge Máximo está agora a ser vítima dos seus próprios disparos. E ainda bem, porque hoje em dia todos temos a obrigação de saber que um microfone é uma arma. Pode ser uma arma de denúncia e protecção, mas também é uma arma de arremesso. Depende de quem a usa e da maneira como a usa.

No dia em que lhe puseram um microfone na frente, a peça não percebeu que a arma estava apontada ao seu nariz. E estava. Agora seguem-se as queixas naturais da Comissão Para a Cidadania e Igualdade de Género ao Ministério Público, mais os inquéritos axiomáticos da Procuradoria-Geral da República e tudo aquilo a que nós, cidadãos, temos direito para acautelar ofensivas da magnitude das que foram proferidas no dia em que este e outros taxistas saíram à rua para protestar contra a concorrência.

A frase assassina continua activa e assim continuará por muito tempo, pois é mesmo assim que as coisas acontecem. Não foi inócua e o seu impacto há-de perpetuar-se enquanto houver memória. Nada do que dizemos ou fazemos é inócuo, aliás, e também temos obrigação de saber isso. As palavras duras são como pedras afiadas que ferem e deixam marcas. Todas as cicatrizes lembram isso mesmo: vestígios de feridas que fecharam e voltaram a criar pele, mas podem ser reabertas, rasgadas pelo mais ínfimo movimento.

Meninas virgens que devem ser violadas é uma sentença brutal que jamais deveria ser proferida. Por todas as razões e mais algumas, mas em especial porque todos sabemos que a história das mulheres não tem nada a ver com a história dos homens. Habitamos o mesmo planeta, atravessamos os mesmos séculos, vivemos as mesmas eras de abundância e sobrevivemos aos mesmos tempos de escassez, mas em demasiadas latitudes existem abismos de diferenças entre homens e mulheres.

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Por ironia, termina esta mesma semana em Portugal a sucessão de estágios internacionais de raparigas moçambicanas licenciadas que são agora finalistas da Academia Girl Move. Estudantes do programa avançado de Liderança pelo Serviço, que esta Academia promove ao longo de 3 semestres, em Nampula, (e equivale a um Mestrado), chegaram a Lisboa há um mês e meio para treinarem competências nas suas áreas de especialidade. Algumas das nossas maiores empresas abriram as suas portas a esta nata de jovens moçambicanas que foram capazes de resistir a todas as adversidades e contornar todos os obstáculos de forma a conseguirem concluir uma licenciatura. Para muitos de nós a realidade-real das raparigas moçambicanas é inimaginável, assim como a realidade-real de uma esmagadora maioria de mulheres a quem são negados direitos fundamentais em todas as latitudes do globo.

Noventa por cento (90%!) das meninas moçambicanas deixam de estudar aos 10 anos, idade em que começam a ter parceiros sexuais e filhos que não desejaram (nem os parceiros, nem os filhos, note-se) e as poucas que permanecem na escola sofrem pressões a todo o momento. Atravessam diariamente terrenos minados por desconfianças e ameaças. Falo de agressões verbais e físicas, de assédio e tentativas de violação, mas também falo de pais e famílias que pura e simplesmente não compreendem o valor acrescentado da escolarização, quando conjugada no feminino. Em certas zonas de África e demais continentes (e não apenas em Moçambique) as raparigas são entregues pelos próprios pais e irmãos a vidas de degradação e prostituição. Ainda crianças, ficam prometidas e casam com homens que não escolheram e de quem não gostam.

As finalistas Girl Move que agora concluem os seus estágios profissionais em Portugal, já trabalham no terreno, em comunidades vulneráveis do norte do seu país, com cerca de 700 raparigas destas idades. Lidam todos os dias com meninas muito pequenas que são tratadas como o infeliz taxista português disse que as virgens devem ser tratadas. As Girl Move, da Academia de Liderança pelo Serviço, também fazem esta formação avançada para terem ferramentas que lhes permitam ter influência directa, concreta, na vida destas crianças, resgatando-as da miséria, da indigência moral e emocional em que vivem ou estão na eminência de poder viver. Como? Ajudando-as a permanecer na escola, criando condições para que não desistam, dando-lhes critérios de decisão e reforçando competências para lidarem com a adversidade.

Já escrevi neste jornal sobre as Girl Move, imediatamente depois de ter voltado de Nampula, onde estive como voluntária a dar formação. Na altura escrevi por ter conhecido demasiadas meninas que deixaram de ser virgens por terem sido violadas, abusadas por homens que usam a sua supremacia física para as manterem numa submissão que devia envergonhar todos os cúmplices da cultura da não valorização das mulheres nas sociedades. A repulsa que nós, mulheres de todo o mundo, sentimos por homens que não respeitam a dignidade das mulheres obriga-nos a falar, a escrever, a gritar sem parar.

E é este grito que se impõe quando deste lado do mundo, neste país de supostos brandos costumes, um homem velho e ‘moustachu’ diz a barbaridade que disse. Não sei se este homem tem filhas, sobrinhas ou netas, nem irmãs ou amigas. Muito menos se tem, ou alguma vez teve, alguma mulher do seu lado, mas tem certamente familiares, amigos e conhecidos com filhas menores, e pergunto-me como consegue acordar e adormecer sabendo que também elas poderiam ser tão vítimas como outras meninas virgens que são raptadas, repetidamente abusadas ou colectivamente violadas em autocarros e ruas por rapazes e homens que acham exactamente o mesmo que ele. Que as virgens são para ser violadas.

(Pobres taxistas honestos e honrados, que ficam para sempre marcados por pertencerem à mesma classe profissional deste inconcebível néscio)