O meu consumo de música pop começou a declinar por volta dos vinte anos e qualquer coisa, cerca de meados dos anos oitenta, e aos trinta a minha ignorância na matéria já atingia proporções cósmicas. Uma desgraça para alguém que, em tempos de pré-adolescência, sabia de cor os nomes de todos os membros de muitos grupos rock, inclusive alguns que, por pudor, não ousaria hoje nomear. Ainda tentei algumas vezes, sem muita convicção, e a conselho de amigos, ouvir coisas novas, mas, tirando uma vez ou outra, não percebi ou não me interessou. Continuei a ouvir, é claro, de tempos a tempos, música que ouvia em tempos passados (os Beatles ou os Kinks, ou os RoxyMusic, por exemplo) e certas coisas novas feitas pelas pessoas que eu costumava ouvir: Leonard Cohen, Zappa, LouReed às vezes, algum Dylan – e David Bowie, em primeiro lugar. Não se nasce impunemente em 1960.

Suponho que, com estes ou outros nomes, é uma experiência comum. As pessoas crescem, esquecem, envelhecem, e depois já é tarde demais para voltar a aprender um entusiasmo ou outro. Tenho até a certeza que é mesmo uma experiência comum, senão não valia a pena estar a falar dela (não vale a pena falar de nada que não possa ser comum: o comum é o essencial). Como tenho a certeza, e nalguns casos sei mesmo, que a notícia da morte de David Bowie afectou muita gente como me afectou a mim: como se tivesse perdido um velho amigo. Há cada vez menos gente viva que não conheço pessoalmente que me inspire esse sentimento. Actores de cinema, talvez um ou dois. Músicos pop, às tantas dois ou um. É difícil definir o que são esses “velhos amigos”, cada vez mais raros. Talvez pessoas que nos acompanharam no nosso crescimento e que, cada uma à sua maneira, influenciou a nossa maneira de pensar ou nos inspirou uma forte simpatia e admiração. Não precisam de ser os melhores na sua arte: J. G. Ballard, que era, sem dúvida, um bom escritor, não era certamente o melhor escritor da sua época – e era um velho amigo. Os velhos amigos não são amigos para nenhuma ocasião particular. A gente conhece-os, e isso basta.

Por acaso, no caso de David Bowie, até acho mesmo que ele era o melhor: o melhor compositor, o melhor letrista, o melhor cantor. O mais inventor, o que surpreendia mais e o mais inteligente. Miguel Esteves Cardoso, que, é claro, sabe mais de música pop a dormir do que eu acordado, escreveu algo parecido com isto (não disse “o melhor” – disse “génio”) num artigo do Público. Mas não tenho, pelas razões mencionadas no início, verdadeira autoridade para argumentar. Sei, no entanto, uma razão ou duas pelas quais comprei sempre infalivelmente os discos de Bowie, ouvindo-os muitas vezes, já há muito passada a minha entusiástica fase pop. E passo por cima, creio, dos clichés habituais, alguns muito verdadeiros, outros menos: enigma da personalidade, etc. Até porque a idade vai dispensando enigmas que não sejam os estritamente necessários.

A primeira razão é porque a música e as letras das canções de Bowie, e isso desde o início, têm quase todas em si uma ameaça de desagregação – em todos os temas que eram habitualmente os seus: a solidão, o sexo, o amor e a sua perda, o tempo, o envelhecimento e a morte – que subitamente é superada por voos românticos (será a palavra que convém?) que ele tinha um talento único para escrever e cantar. Ou noutros casos, pela simples alegria. Não dou exemplos – mas é assim. Como se do sem-sentido brotasse, de repente, o sentido absoluto. E mesmo quando não se dá essa passagem para o sentido absoluto, obviamente o amor, há uma espécie de aceitação da dor e do sofrimento, do sem-sentido, formidávelmente adulta, que recupera, sob um outro modo, essa superação. Através de canções que são as mais certas. Também não dou exemplos – mas também é assim.

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A outra razão é o facto de se poder ouvir as suas canções quase como se fosse sempre pela primeira vez. Não há, verdadeiramente, repetição. Lembramo-nos delas, é claro, mas descobrimo-las de novo ao mesmo tempo. Dito de outra maneira: a sua música não é aderente – ou é-o só muito secundariamente – a tempos, lugares ou pessoas. Quando ouvimos mais uma vez as suas canções, não as colamos a experiências concretas nossas, pelas quais elas ganhariam vigariamente o seu sentido. Nada há de espúrio nelas. O que, não consigo evitar de pensar, apesar da minha falta de competência na matéria, é no mínimo incomum na música pop. E tem certamente a ver com o gosto da liberdade e do risco que era o seu. A liberdade e o risco despreendem da aderência viscosa às coisas. O cuidado medroso prende-nos. E aqui encontra-se, de facto, o tal enigma. Que é, no fundo, o enigma da sensibilidade e da inteligência. Que nele tinham, muitas vezes, um excelente humor.

Tudo isto se vê na canção Lazarus, do disco que editou dois dias antes de morrer – e também no vídeo que o acompanha. A canção fala obviamente da morte própria. E tem exactamente aquele tal aspecto de superação do sem-sentido, do sem-sentido máximo: a morte. No vídeo vê-se Bowie numa cama de hospital, enquanto a morte se aproxima, procurando tocá-lo. E, ao seu lado, um duplo – outro tema muito dele – procura, em desespero, escrevinhando sobre uma pequena mesa, encontrar as últimas palavras certas, como se o tempo para o fazer fosse o mais breve dos tempos. E as palavras, a voz, uma voz inconfundível, e as imagens, são de um acerto completo, nos antípodas de qualquer sensibilidade demonstrativa. Aí onde a probabilidade de falhar era quase inevitável, e o falhanço roçaria, no mínimo, a obscenidade, Bowie milagrosamente acertou em cheio. Não nos fez voyeurs da sua morte: cantou a sua morte com despreendimento e impecável sobriedade, e até com um momento de humor, notório para quem prestar atenção à letra da canção. Comovente como tudo.

Um bom, corajoso e genial amigo.