Muito se tem dito e escrito sobre o coração do Salvador Sobral, mas o essencial nem sempre fica evidente. Parece que ressoa mais a doença do que a pessoa e, na verdade, ninguém merece ser reduzido à sua doença. Devia ser proibido publicar pré-anúncios de fim de vida quando os visados estão vivos e bem vivos, com tudo para dar e receber. Não está certo usar a fragilidade humana para fazer manchetes e capas só para fazer dinheiro, sem olhar à sensibilidade daqueles sobre quem falam.

Até ao concerto de sexta-feira passada, dia em que o Salvador cantou para quem o foi ouvir de forma livre e gratuita, e em que ele se despediu dos fãs com um sentido “até já!”, as revistas que exibem este tipo de artigos anunciavam sem pudor absolutamente nenhum que Salvador tinha 3 meses de vida. Não é preciso ser amigo do Salvador nem conhecê-lo pessoalmente para perceber a brutalidade destas primeiras páginas. Basta ser humano e conferir o que sentem todos os seres humanos quando confrontados com doenças graves e diagnósticos pesados.

Não conheço ninguém capaz de se sentar ao computador para escrever com ligeireza artigos como estes, que devassam a intimidade dos que nada fazem para a expôr e, muito pelo contrário, evitam a todo o custo falar publicamente das suas dores e desconfortos, mas estas pessoas existem e aparentemente dormem descansadas, de consciência tranquila e sentido de dever cumprido.

Será que não conhecem doentes? Será que nunca puseram um pé no hospital? Nunca tiveram uma urgência? E nunca tiveram medo de morrer? Será que nunca estiveram à cabeceira de um familiar, um amigo ou alguém próximo? Será que não? E mesmo tendo atravessado a vida nessa formidável bolha, a flanar pelo mundo, pairando sobre a realidade-real de todos os viventes que mais cedo ou mais tarde são trespassados por dores próprias ou dos que lhes são próximos e queridos, será que mesmo assim não entendem que quanto maior é o sofrimento, maior é a necessidade de protecção?

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Custa acreditar que alguém se ocupe da doença dos outros só para os explorar e deixar ainda mais vulneráveis do que já estão, mas está à vista que sim. Existem autores, jornais, revistas e público para tudo isto e muito mais, mas bastaria uma sensibilidade mediana para perceber o que sentem as vítimas de doenças graves e compreender a barbaridade que é verem-se assim expostas, sem reservas, perante todos, com o anúncio da data do seu suposto fim. Diria que aquilo que fazem ao publicar estes artigos é equivalente a invadir o quarto de hospital, destapar a cama e exibir a nudez de quem jaz débil e sem forças, esperando que morra em directo para que as audiências subam.

Parece tão simples o exercício de calçar os sapatos dos outros, que se torna difícil crer que ninguém o faça antes de avançar com manchetes bombásticas. No caso do Salvador é muito simples: sofre as dores, os desconfortos, os internamentos e tratamentos, mais a angústia da incerteza sobre o futuro, mas optou claramente por viver tudo isto na intimidade do seu círculo familiar e de amigos. Podia ter feito como fizeram outros e partilhar publicamente a evolução do seu estado. Acontece que não o fez e esta sua opção devia ser escrupulosamente respeitada.

Faz sentido que figuras públicas ou pessoas influentes escolham ajudar outros doentes, dando testemunho da forma como lidam com a sua própria doença, porque é conhecido o impacto que isso pode ter na atitude terapêutica de quem sofre, mas no caso do Salvador ele não optou por viver a sua doença dessa forma. E isso faz toda a diferença, pois tão legítimo é abrir e partilhar, como fechar e proteger. Aliás, ao manter-se em palco, a cantar, apesar de todas as suas dores, o Salvador deu sucessivos exemplos épicos de superação. E isso devia bastar aos curiosos e voyeurs.

Conheci o Salvador há uns anos, já inteiramente consciente do seu estado de saúde, e ficámos amigos muito antes de ele ser conhecido e ouvido no mundo inteiro. Nunca a circunstância da sua doença foi tema de conversa fácil entre amigos. Todos sentíamos e continuamos a sentir um enorme pudor em abordar o assunto e apenas o fazemos quando ele está presente ou perante quem o acompanha e dá abertura a essa conversa. Sabemos bem demais quão doloroso é viver como ele vive, mas acima de tudo sabemos como ele valoriza a vida, a música, a beleza, a alegria, a amizade, o amor e tudo o que o liga ao que ama com paixão.

E é por sabermos tudo isto, e o conhecermos bem, que o sobressalto é maior. Se entre amigos e conhecidos todos respeitamos a sua opção de auto-protecção e falamos fundamentalmente da vida, de tudo o que o anima e o ajuda a superar-se diariamente, como é que desconhecidos têm a lata de se pôr a falar e a especular sobre os supostos meses de vida que supostamente lhe restariam? Como é que ninguém se põe no papel do Salvador para realizar o choque que é sair à rua e ter em cada esquina uma sentença de morte escrita e publicada em letras garrafais? Pior, com data aprazada e sem direito a Natal.

Como escreveu Novalis, “metade é ciência e a outra metade é fé”. Nesta lógica nunca ninguém saberá quantos dias, quantos meses e anos cabem a cada um. E se assim é, para quê devassar e cavar mais a angústia de quem já se sente angustiado? Para quê elevar mais a ansiedade? E com que objectivo se opta por tentar levianamente matar a esperança de quem está vivo e, insisto, com tudo para dar e para receber?

Se eu estivesse a viver o que o Salvador está a viver e passasse pela terrível experiência de me ver atacada em vez de protegida pelos media, não sei se seria capaz de fazer tanto como ele faz, continuando a dar o seu melhor aos outros. O Salvador cantou e deu concertos até à véspera do maior de todos os seus internamentos. Chorou e riu. Cantou com lágrimas nos olhos e um tremendo nó na garganta que nunca conseguiu desfazer, mas cantou de pé e saiu pela porta grande.

Conheço o Salvador fora dos palcos e longe das luzes, e sei que tem um coração grande, desmedido, que faz dele um ser humano único. Mais do que a voz, que é das melhores de sempre, o coração do Salvador faz toda a diferença neste mundo. É com o coração que canta, é pelo coração que age, e é no coração que nos toca com a sua voz, as suas palavras provocadoras, os seus gestos resgatadores e as suas causas solidárias. O coração do Salvador até podia ser motivo de notícia, mas apenas por estas razões. Nunca pelas outras.