A consequência mais notória dos acontecimentos políticos que tiveram lugar durante o último ano, e porventura o seu resultado mais duradouro, foi um enorme aumento da sofisticação conceptual das camadas da população que até aí não tinham tido acesso a bens filosóficos. O sinal mais evidente deste refinamento é o modo como entrou em circulação alargada a distinção entre ‘politicamente legítimo’ e ‘moralmente legítimo’. Até ao Outono a distinção filosófica mais complicada de que eram capazes era a distinção, aliás não sem interesse, entre ‘bola na mão’ e ‘mão na bola.’

À maioria dos que se tornaram capazes de distinguir entre ‘politicamente legítimo’ e ‘moralmente legítimo’ no entanto, não preocupa, como um marciano ou um filósofo esperaria, as dificuldades que vêm de poder usar-se a palavra ‘legítimo’ de várias maneiras diferentes, ou de pessoas diferentes considerarem coisas incompatíveis como moralmente legítimas. Pelo contrário, satisfazem-se com a ideia de que as acções a que chamam politicamente legítimas não são bem legítimas; e que as acções a que chamam moralmente legítimas são sempre legítimas. Não lhes importa de que acções se está a falar: são moralmente legítimas as acções que por coincidência afortunada acham recomendáveis; e politicamente legítimas as que apenas relutantemente se concedem a terceiros.

A distinção entre ‘politicamente legítimo’ e ‘moralmente legítimo’ sugere que o mundo vasto se divide entre coisas que posso fazer e coisas que eu devo fazer; e também que, naturalmente, ‘dever’, como observaram os melhores autores, implica ‘poder.’ Faz crer aos seus utentes que as acções dos outros, quase sempre moralmente ilegítimas, resultam de eles arreliadoramente poderem fazer o que não devem; e as suas próprias acções, sempre moralmente legítimas, resultam de eles fazerem o que podem. Claro está que os outros, ainda mais arreliadoramente, pensam exactamente o mesmo. Quanto mais falamos de moral mais parece que aos outros apetece fazer o mesmo: ‘moral’ é uma epidemia verbal.

Uma maneira melhor de ver as coisas é reparar que a distinção entre ‘moralmente legítimo’ e ‘politicamente legítimo’, ao ser usada para dar a entender que acções politicamente legítimas podem ser moralmente ilegítimas, sugere que certas coisas que se podem fazer não devem ser feitas. Este uso está de acordo com o facto maravilhoso de só nos ocorrer não fazer aquilo que podemos fazer. É por isso mais promissor considerar antes o sentimento ocasional de que não devemos fazer algumas coisas que podemos fazer; e considerar que ‘não dever’ implica ‘poder.’ A discussão moral genuína começa sempre com argumentos para não se fazer uma coisa que se pode fazer, isto é, com argumentos sobre proibições. Quem imagina que a sua missão neste planeta é fazer tudo o que lhe é fisicamente possível ou legalmente permitido, mesmo que gabe regularmente a legitimidade moral dos seus feitos, escusa de se dar ao trabalho de se preocupar com questões morais.

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