Os Jogos Olímpicos acabaram no domingo, e com eles acabou a cascata de alertas de telemóvel com que a imprensa nos mantinha a par da participação nacional. Na última semana, tudo se tornou frenético. De manhã, ficávamos a saber que fulano ia tentar qualificar-se. Ao meio dia, que estava qualificado. Ao princípio da tarde, que estava em causa uma medalha. Ao fim da tarde, que a prova ia começar. A seguir, que tinha ficado neste ou naquele lugar. E no fim, chegava a frase mais memorável da entrevista de rescaldo.

Não sei se os alertas da imprensa medem o interesse da nação ou aquilo que os jornalistas desejariam fosse o interesse da nação. Estamos em Agosto, claro. Seja como for, este fascínio estival com medalhas olímpicas nada teve de especificamente português. A imprensa da Espanha, do Reino Unido, ou da França, mostrou-se igualmente incansável em promover as respectivas proezas olímpicas, no seu caso mais proveitosas. A “equipa Grã Bretanha”, por exemplo, obteve a segunda posição na lista dos países mais medalhados. É curioso: os ocidentais, como notou Simon Jenkins no Guardian, parecem ter sucumbido à antiga febre soviética dos títulos desportivos. Na Grã-Bretanha, houve mesmo uma decisão política, com o devido investimento, para fazer flutuar o maior número de vezes possível a bandeira nos estádios olímpicos. Daí, aliás, a preferência por modalidades, como a ginástica ou o ciclismo, onde há muitas medalhas em jogo.

Os Jogos Olímpicos foram uma das mais notórias frentes da Guerra Fria. As ditaduras comunistas faziam uma estranha questão de demonstrar superioridade desportiva. O que tinha sido imaginado como um convívio de cavalheiros amadores, tornou-se um confronto de profissionais financiados e, no caso da União Soviética ou da Alemanha de Leste, sistematicamente drogados pelo Estado. Mas o empenho nos resultados olímpicos não terminou com a Guerra Fria. Pelo contrário, parece mais febril do que nunca, tal como acontece com a organização espectacular dos jogos, uma das mais duradouras heranças da Alemanha nazi.

O culto totalitário do desporto teve continuadores. Para começar, nos meios de comunicação das democracias, especialmente as televisões, que tratam o drama dos desportistas nacionais como mais uma via para agarrar espectadores. Não há, de facto, ditadura mais pesada do que a ditadura das audiências. Mas não são só os ecrãs. No caso da Grã-Bretanha, a decisão de criar sobredotados olímpicos foi oficial e é difícil deixar de a interpretar como uma espécie de compensação, num país que nunca mais deixará de fazer o luto da sua condição de superpotência. A marinha real já não domina os mares, mas os seus ciclistas dominam as pistas. Num Ocidente envelhecido e estagnado, as medalhas estão a tornar-se o que tinham sido para os ditadores comunistas no seu declínio: excepto que neste caso não é uma clique de camaradas corruptos que tenta convencer o povo de que, apesar das prateleiras vazias, vive num sistema radioso, mas o próprio povo, ainda com as prateleiras cheias, que espera ver a sua nacionalidade associada ao frisson da vitória.

Querem mesmo muitas medalhas no Japão, daqui a quatro anos? E querem-nas quase garantidas, sem dependerem dos acasos da sorte ou do trabalho de um atleta especial? Então, o único caminho é o da industrialização desportiva da Grã-Bretanha (e, pelos vistos, a canoagem pode ser o nosso ciclismo). É fazer as contas: no caso da Grã-Bretanha, deu 4,6 milhões de euros por medalha… Dizia-se que D. Maria Pia, quando estranhavam as suas extravagâncias, comentava sempre: “quem quer rainhas, paga-as”. As medalhas olímpicas são como as rainhas.

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