A TVI fez uma reportagem denunciando más práticas várias na Raríssimas. É uma IPSS com trabalho meritório, e os indícios de desvarios que lá se passaram serão investigados pelo Ministério Público e pela tutela. Mas este caso também nos permitiu ver alguns querubins da nossa política que se envolvem com instituições que recebem dinheiro dos contribuintes. Motivados, claro, apenas pelo mais assolapado amor pelo próximo.

Temos um secretário de estado da Saúde (demitiu-se; aleluia) que achou razoável receber três mil euros mensais, por largos meses, de uma instituição de solidariedade com problemas financeiros. Por trabalho vago de consultoria. Tirando casos muito particulares de trabalho a tempo inteiro, bastante especializado e com alto valor de mercado, que tipo de político considera adequado, num país onde toda a gente está sempre à míngua de fundos, receber um complemento do ordenado de milhares de euros de uma IPSS?

Temos a deputada socialista Sónia Fertuzinhos, mulher do ministro que fornece centenas de milhar de euros anuais à Raríssimas, sendo escolhida pela dita Raríssimas para uma alegre viagem a um país nórdico. (É indiferente se foi a IPSS que pagou a viagem ou se simplesmente escolheu a deputada para beneficiária do presente dos organizadores do evento.) Como é possível um político eleito não ver conflito de interesses?

E temos Vieira da Silva, ministro da segurança social, que dá montantes jeitosos a uma associação que oferece viagens à sua mulher e da qual já fez parte dos órgãos. Chefiando um ministério portador de um curioso buraco negro, onde até as cartas que denunciam atos questionáveis da dita IPSS se desmaterializam. Vieira da Silva, alma simples, nunca reparou que se pagavam ordenados exorbitantes para uma IPSS, nem que os carros não eram propriamente modestos, nem que a presidente tinha tiques megalómanos. Mas não surpreende, já que Vieira da Silva foi dos que acompanhou Sócrates sem desconfiar dos hábitos pouco consonantes com os rendimentos que lhe eram conhecidos. Talvez fosse bom começarmos a exigir políticos menos ingénuos que os que beatificamente acreditaram no conto de fadas da fortuna da mãe de Sócrates.

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Perante tudo isto, qual a reação à esquerda? As do costume. João Galamba (palmas para a falta de originalidade) tentou colocar a culpa em cima do ministro da segurança social do governo anterior. E as claques começaram logo a apontar problemas ao trabalho jornalístico da TVI. (Em boa verdade, estão muito treinadas: fizeram-no anos a fio com os trabalhos jornalísticos sobre Sócrates.)

Horror, a jornalista identificou Sónia Fertuzinhos como casada com Vieira da Silva. Evidentemente é uma relação relevante neste caso, mas vamos fingir todos que é uma menorização imperdoável e machista da deputada socialista e concentrar a nossa fúria na jornalista.

Choque e pavor, a jornalista disse que um vestido de 200€ era alta costura. De facto, é um erro clamoroso. Consta que o fantasma de Christian Dior, sedento de vingança, está à procura da jornalista para a atormentar sete dias e sete noites. Um vestido de alta costura custa dezenas de milhar de euros e a marca referida na reportagem nem sequer é pret-a-porter de luxo. Uma coisa destas desqualifica logo uma reportagem, não é? Se calhar não, porque num país onde um quinto dos assalariados ganham o salário mínimo, um vestido haute couture Elie Saab é tão inacessível como um vestido de duzentos euros. Mas enfim, não vamos pedir à nossa esquerda que perceba as vicissitudes da vida dos mais pobres, aqueles que diz representar, pois não?

Já PCP e BE, de caninos afiados, clamaram contra a existência de instituições como a Raríssimas recebendo dinheiros dos contribuintes. Afinal o estado é que devia responder às necessidades de toda a população, certo? E de caminho enlameia-se todo o setor social privado, confundindo-o com as manigâncias da Raríssimas. Pois bem, deixo o meu testemunho. Conheço muita gente que trabalha em IPSS e ONG. É certo que não são apadrinhadas por políticos, porém nunca vi carros de luxo, nem despesas de representação, nem spas nem ordenados milionários.

Bom, para não abusar do tempo dos leitores não vou entrar na discussão ideológica que supõe que uma máquina pesada como um estado, orientada para as suas clientelas, tem capacidade de responder a tudo. Ou, se a tivesse, se deveria.

Lembro apenas que a esquerda – que quer o estado com monopólio de atividades que podem ser desempenhadas por instituições privadas, eventualmente com subsídios públicos (mediante fiscalização, claro) – votou, aquando da discussão do orçamento para 2018, contra a proposta do CDS de alargar de três para cinco os ciclos de procriação medicamente assistida no SNS para casais inférteis. Apesar de proclamar adorar a medida e de o aumento de ciclos de tratamento exponenciar o sucesso da PMA.

A esquerda toda – que depois do fim da austeridade (dizem-nos) se recusa a pagar atos médicos fulcrais para cerca de 300.000 casais, tão caros que pouquíssimos os poderão pagar nas clínicas privadas (para a esquerda perceber: só aqueles que sabem como reconhecer uma carteira Botega Venetta), num país com uma taxa de natalidade calamitosamente baixa – diz com desfaçatez que o estado pode suportar na totalidade todas as respostas sociais.

A falta de noção e de adesão à realidade é tanta na nossa esquerda que eu começo a suspeitar que a ideologia socialista se deve a perfis de química cerebral que produzem naturalmente substâncias alucinogénias. Os neurologistas que estudem isto. Isto e as desmaterializações no ministério da segurança social.