“Por vezes, os portugueses não sabem estar em Angola” – afirmou Jorge Nuno Pinto da Costa a propósito da visita recente àquele país africano. Destemido, irónico, contido quando a diplomacia exige, na ocasião o presidente do Futebol Clube do Porto vergou-se ao dogma do universo empresarial luso-africanista. Outros, como Luís Mira Amaral, têm sido pródigos no mesmo tipo de atestados. Até certo ponto a atitude é compreensível. Rezar pelo dogma garante negócios, lucros, simpatias junto de quem importa. Todavia, o berço do dito está noutro universo, no intelectual, onde mantém o habitat natural, daí contaminando tudo o resto.

Há meses, noutro contexto, Alexandra Lucas Coelho exemplificou como se puxa o lustro intelectual à coisa, o que desencadeou uma reação mais do que justificada do secretário de estado da cultura, Jorge Barreto Xavier, que a rotulou de “primária”. O eterno retorno a Fernando Pessoa faz falta à jornalista e escritora, como a tantos outros que renegam o lugar histórico dos portugueses no mundo e se batem mesmo contra ele:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu!

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Sendo o dogma dos portugueses que não sabem estar em África ou no Brasil filho pródigo de leituras seletivas grosseiras do “colonialismo” (com todas as aspas), o indigesto em quem o alimenta resulta da altivez de extravasarem do paroquialismo existencial de cada um para se arvorarem em patronos da moral e bons costumes. Para que se perceba o que está em jogo, recorro a George Orwell: “To see what is in front of one’s nose requires a constant struggle.”

O verdadeiramente digno de ser noticiado acontecerá no dia em que um português de Portugal – dos que pertencem ao rol dos corajosos, lúcidos, frontais, inconformados, que sabem estar no mundo, que têm visão – afirmar a plenos pulmões, em Luanda, que “Os angolanos não sabem receber os portugueses!” É de ciência sabida que as queixas começam longe do destino, nos primeiros contactos com as autoridades angolanas e respetivos serviços em Lisboa. Poderá também acontecer no dia em que um ilustre português que tenha portas abertas noutros continentes (tenho dificuldades em imaginar tal sinceridade num ilustre angolano) afirmar, em Lisboa, e para que também se saiba do outro lado dos mares, que “Os angolanos não sabem estar em Portugal!”, mesmo com o suavizador prefixo “Por vezes”.

É indiscutível que tanto têm razões legítimas os que criticam quanto os que elogiam qualquer país. Por atentar contra o elementar sentido de justiça, o que incomoda é que das expressões utilizadas entre aspas neste texto, todas verosímeis, algumas estejam interditas no espaço público. A realidade pode ser recalcada, mas jamais desmentirá o óbvio inconveniente sacrificado no altar do requentado luso-tropicalismo travestido que há décadas usa e abusa do facto de os portugueses aceitarem viver amordaçados numa estulta menoridade identitária. Como se não bastasse, esta onera a vida da sua diáspora no hemisfério sul.

Não será necessário sair do país para saber que é comum as minorias viverem expostas a um sem número de ameaças, entre usos e abusos das autoridades e dos empresários do país de acolhimento, potenciais humilhações ou riscos de segurança. A existirem, tais ameaças pesam hoje bem mais nas vidas da diáspora portuguesa em Angola do que nas vidas da diáspora angolana em Portugal, fruto da legitimidade de que uns beneficiam (com justiça!) para exporem livremente o que pensam e as angústias que vivem na sociedade de acolhimento, enquanto outros nem na sua terra-mãe lhes é reconhecida tal legitimidade, muitíssimo menos no país estrangeiro onde “não sabem estar”.

Os da diáspora portuguesa branca do hemisfério sul, quando passam pela terra-mãe, no máximo, limitam-se a sussurros em mesas de cafés, salas de espera de consultórios médicos ou ambientes privados. Fora do reino informal, a manifestação pública de frustrações, angústias ou medos por lá vividos nunca existiram. Ao longo destes muitos anos não dei por reportagens, das que omitem identidades, que captassem o que as aparências toscamente escondem. Resta-nos crer como são felizes os portugueses brancos (ou outros imigrantes) que vivem no calor dos trópicos. Lavam-nos a alma as reportagens da TSF sobre os feitiços da água da Bengo que convertem os portugueses ao paraíso angolano. É quanto baste. Num outro paraíso, Timor, embora não tão excelso como as Áfricas, os tempos que correm comprovaram como “por vezes, os portugueses não saber estar”, por cima magistrados.

O que vimos aprendendo há décadas, via comunicação social ou universidades, é que a Europa ocidental é o lugar do mundo mais problemático, mais inseguro, mais ameaçador, mais discriminatório e onde mais se exige todo o tipo de escrutínios em defesa das minorias imigrantes e descendentes. Aprendemos também que os portugueses partem incorrigíveis para a diáspora. Por lá, importa proteger dos seus abusos um continente inteiro, a África, onde populações autóctones, esmagadoramente maioritárias, controlam governos, polícias, exércitos, negócios, instituições. Ainda assim, branco por perto só domesticado ou com mordaça.

Nesta nau de loucos, o pavor do anátema “racista” sempre pendente nas cabeças da diáspora portuguesa, largamente alimentado na terra-mãe, encarrega-se do resto. Tudo regado a “afrodólares”.

Convinha que fosse entrando alguma luz na floresta. Desbastá-la não é necessariamente da responsabilidade dos governos ocidentais, tanto pior no caso português em eternos apuros financeiros. Dos governos espera-se e exige-se muita prudência. Todos os demais chegam e sobram. Jornalistas, académicos, escritores, ensaístas, notáveis, empresários, ideólogos descomprometidos, fazedores de opinião, entre outros que “por vezes” (o suavizador prefixo) não merecem a liberdade de que disfrutam nas sociedades ocidentais. Têm todas as condições e mais algumas, mas em matérias essenciais chegam a assemelhar-se a ecos terceiro-mundistas.

No tempo colonial, o português branco em África poderia destratar, criticar, corrigir o africano negro como entendesse. Da nova ordem moral que sara essas feridas nasceram a mulher-nova e o homem-novo brancos portugueses hoje instalados em África ou com interesses no continente. Caracterizam-se por oscilar entre o introvertido agrilhoado a silêncios e o histriónico moralista anti-português. Não sendo atitudes aceitáveis, no entanto são compreensíveis quanto mais os indivíduos vivem expostos aos pequenos e grandes poderes do país que os acolhe.

Para além da imprensa, os blogues cujos autores pertencem à diáspora portuguesa em África, por alguma razão raros, ajudam ao teste do algodão ao desfazerem utopias da blogosfera como espaço de liberdades individuais. Navegam em reinos etéreos africanamente ilustrados como se nessas sociedades nada existisse de censurável. O que é silenciado, as relações de poder a que ninguém escapa, acaba por ser perturbador por emergir por estridentes vias ínvias. Algumas dessas mesmas páginas pessoais não desperdiçam um qualquer pretexto ocorrido na distante terra-mãe, Portugal, para destratarem “o Passos”, “o Portas”, “o Sócrates”, “o Professor Marcelo”, “o Soares”, “o Cavaco” ou para ridicularizarem hábitos e vícios portugueses. As realidades africanas nas suas ambivalências, inseguranças, crueldades ou violências, as que de facto os condicionam todos os dias mesmo sem saírem de casa, não existem. Existindo, África é para ser amada, defendida, compreendida, respeitada pelos estrangeiros que lá vivem.

Não são necessários sintomas adicionais para se perceber a castração de direitos humanos fundamentais aqui subjacentes, muito em concreto à liberdade de expressão e à participação cívica pelas minorias imigrantes ou, num horizonte mais favorável, do livre usufruto de direitos de participação política pelos estrangeiros residentes em determinadas circunstâncias. Mesmo as regras mais elementares desta filigrana civilizacional têm exceções. Não se aplicam aos ocidentais (brancos) fora de casa, os seus principais promotores dentro de casa. A generosidade não tem necessariamente de produzir estúpidos.

Dos povos mais admiráveis na face da terra pelo que fizeram e são, é lamentável que os portugueses vivam subjugados a um fantasma com nome próprio, “Identidade Falhada”, e apelido, “Sem-Vergonha”. Só tenho de agradecer a Pinto da Costa, Mira Amaral, Alexandra Lucas Coelho e a outros tantos por tornarem cristalinos estes tempos de mediocridade portuguesa e, bem mais do que isso, tenho de lhes agradecer a inestimável coragem de se posicionarem como ilustres chefes de pelotão.