Alerta: a parte final deste texto contém revelações sobre o enredo do filme.

No tão badalado Silêncio de Martin Scorsese, adaptação do livro de Shusako Endo com o mesmo título, há um percurso que, rapidamente se percebe muito mais longo, profundo e denso do que a distância que separa geograficamente Portugal do Japão. Mal podiam saber os padres Rodrigues e Garupe que, depois da longa travessia que os conduziu ao País do Sol Nascente, a grande distância ainda estivesse por percorrer. A viagem ainda estava no início. De facto, há um itinerário que é o mais difícil de percorrer: o itinerário interior de cada um.

Os dois jesuítas rumam ao Japão em busca do seu mestre, P. Ferreira que, dizia-se em Portugal, teria cometido o maior dos pecados: a apostasia. Não era possível. O padre Ferreira jamais poderia ter renegado a sua fé em público. A densidade do filme vai confirmá-los nessa triste notícia. Mas não sem batalhas interiores.

A apostasia é má. Por todos os motivos e mais algum. Antes de mais, é uma falta a um compromisso. Humanamente falando, é sempre reprovável que não honremos os nossos compromissos. É uma infidelidade. Depois, é uma cobardia. Diante do medo do sofrimento, renegamos aquilo em que acreditamos. E se “aquilo” em que acreditamos é um “Aquele” em quem cremos, então essa negação ganha os contornos da traição de Judas. O apóstata é um traidor. Mesmo um bom cristão pode, e deve, perdoar o pecado da apostasia. Mas nunca afirmar que a apostasia é um mal menor. Não por acaso, nos primeiros séculos da Igreja, este era um pecado considerado pelo menos ao nível do homicídio. Quando, ainda por cima, a apostasia é cometida por um padre com a missão de evangelizar, esse pecado é grave como poucos, devido ao efeito que produz na comunidade cristã a quem foi enviado. Descredibiliza não só o próprio, mas a mensagem mesma do Evangelho fica afinal reduzida a pó.

No extremo oposto está o mártir. O mártir é aquele que, diante de qualquer ameaça, dor, sofrimento, tortura ou morte, jamais renega a sua fé. O cristianismo tem uma história rica de martírios. Tertuliano (séc. II) afirma mesmo que o sangue dos mártires é semente de novos cristãos. Chegar a ser mártir cristão é testemunhar a fé em Jesus Cristo numa fidelidade inabalável que nem a morte desvanece. Muitas são as histórias, mesmo aquelas às quais a tradição e a imaginação humana foram acrescentando feitos maravilhosos e atos heroicos de uma coragem hercúlea, de mártires que enfrentavam os seus algozes diante das atrocidades mais horrorosas.

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O Silêncio de Scorsese, tem o mérito de nos transportar por dentro ao lugar onde o martírio e a apostasia se cruzam e se abraçam. E desmonta a nossa imagem bonita do mártir e horrenda do apóstata, revelando como tal perspectiva é demasiado simplista.

Pedro, o chefe dos apóstolos e primeiro Papa da Igreja, deu a vida por Cristo. Mas também o negou. Os apóstolos, todos eles abandonaram o Mestre no momento crucial. É essencial que os evangelhos não tenham tentado esconder este aspeto. A Igreja é uma igreja de mártires e de pecadores. Scorsese desnuda esta tensão, desmontando uma visão triunfalista do cristianismo e fazendo-nos mergulhar na realidade dura e crua. O P. Rodrigues, personagem principal, sente-se perdido diante do silêncio de Deus.

Quem já fez os Exercícios Espirituais de Sto. Inácio de Loyola, sabe que o filme capta muito bem o modo de rezar e de se relacionar com Jesus Cristo que os Exercícios propõem. O diálogo interior, o uso da imaginação para contemplar e entrar nas cenas evangélicas, o refletir e questionar do texto, a luta espiritual, a busca da vontade de Deus, tudo é acenado neste filme.

Mas não se pense que a grande questão é simplesmente a de afirmar ou renegar a fé. Rodrigues, apesar do pavor de sofrer como todos nós, não questiona apostatar para se salvar. O panorama adensa-se com uma afirmação bem posta na boca do governador-inquisidor Inoue: “a tua glória é o sofrimento deles”. Este é o ponto crucial. A complexidade da vida, da fé, da honestidade e da integridade de um jesuíta que quer, acima de tudo, seguir Jesus Cristo vê-se armadilhada. Tenho o direito de recusar pisar o fumie com a imagem de Jesus, sabendo que a vida dos meus irmãos, que sofrem os tormentos da tortura, depende deste gesto? Mais, o que realmente me move? Não terá o inquisidor razão quando me acusa de, no fundo, eu não querer abdicar de uma glória própria? Não seria tentação maior a da presunção de me comparar com próprio Jesus?

Lutando com o silêncio de Deus diante deste dilema que o dilacera, parece finalmente sentir, em batalha de oração interior, que Jesus lhe diz: “pisa-me!”. Pisa-me nesta placa para não me pisares nos teus irmãos. É toda uma perspectiva de vida e de fé que acaba de ruir. Afinal quem és Tu, Senhor? Aquele que diz que “quem perseverar até ao fim será salvo” (Mt 14,23) ou O que diz: “o que fizeste a um dos meus irmãos a mim o fizeste” (Mt 25, 40)? Ao pisar o fumie, Rodrigues torna-se apóstata. Ao apostatar, renuncia também a ser mártir, reconhecido aquém e além mar como o herói que resistiu até ao último suplício. Mas nesse gesto, tão simples como dar um passo, e tão decisivo como a vida e a morte, salva os seus irmãos de serem cruelmente torturados até à morte.

E no entanto, quando o P. Sebastião Rodrigues pisa o fumie, o galo canta. Mas nunca saberemos se o galo ficaria calado se o jesuíta optasse por não mover o pé, provocando assim a tortura e a morte dos seus irmãos.

É verdade que espreita aqui subtilmente uma vitória da elite cultural do Japão de então, como das elites intelectuais pseudoneutras de hoje. Ao sublinhar a complexidade da situação e ao mostrar como, no funeral, feito com todas as honras budistas, Sebastião Rodrigues morre com um pequeno crucifixo escondido na mão (cena ausente no livro de Shusako Endo), o filme empurra a fé para o foro privado da vida. Afinal, aquele que apostatara, mantivera-se privada e interiormente cristão até ao fim.

De facto, para um certo mundo laico e laicizante, o lugar da fé é no íntimo de cada um. E não deve haver qualquer expressão visível de símbolos religiosos na sociedade em que vivemos. Ao longo do filme, muitas vezes se ouve das autoridades japonesas que pisar o fumie é apenas uma simples formalidade e que, ao fazê-lo, os cristãos salvarão as suas vidas. Mas, tanto os que eram forçados como os que forçavam a pisá-lo bem sabiam que não se tratava de uma mera formalidade. Ninguém mata ou dá a vida por uma formalidade.

Tudo seria mais fácil se fosse mais simples. Mas não é. A vida é complexa. Recusando uma visão exclusivamente triunfalista do martírio ou miserabilista da fé, o Silêncio convida-nos a acolher a vida na sua complexidade, sem juízos superficiais ou simplistas. Sabemos que “agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois, conhecerei como sou conhecido. Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior de todas é o amor” (1Cor 13, 12-13).