Uma era auxiliar de ação médica. Outra era dentista. Uma foi assassinada em 2013 e outra um ano depois. Mara Lameira e Luana Camargo, de 32 e 28 anos, foram mortas à facada às mãos dos maridos de quem se tentavam separar. Os dois casos chegaram à barra o tribunal e, em menos de duas semanas, os juízes aplicaram uma sentença igual: 21 anos de cadeia.

Naquele dia de 2013 Mário Silva, agora com 36 anos, deixou o filho com os avós. Dias antes tinha assinado os papéis do divórcio, mas não aceitava que Mara pudesse ter outra pessoa. Perseguiu-a do local do seu trabalho, no Hospital Pulido Valente, até Chelas. E assim que a viu entrar num prédio, onde alegadamente viveria o seu novo namorado, esfaqueou-a. Andou cinco dias fugido até ser detido.

Esta terça-feira o coletivo de juízes do Tribunal Central de Lisboa ditou-lhe o destino: 21 anos de cadeia, resultado de um cúmulo jurídico de 20 anos de prisão por um crime de homicídio qualificado e dois anos por um crime de coação agravada.

O coletivo de juízes deu como provado, no essencial, o despacho de pronúncia, considerando que a “violência foi brutal, o dolo foi direto e a ilicitude muito elevada”, refere a Agência Lusa.

O arguido foi ainda condenado a pagar 150.000 euros de indemnizações aos familiares de Mara Silva.

Luana também só queria divorciar-se

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A dentista foi morta pelo marido depois da primeira noite fora de casa

Cerca de um ano depois, na Rua Augusta, em Lisboa, foi Marcos Camargo, 40 anos, quem entrou disparado na clínica dentária da mulher. Era a primeira noite que ela dormia fora de casa depois de seis meses a tentar separar-se. Estava cansada de ser vítima de maus tratos, como então contou o Observador. Os dois acabaram por fechar-se no consultório. Mas as palavras foram poucas. Ele apunhalou-a com uma faca de cozinha em várias zonas do corpo. Acabou preso pouco depois.

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No último 14 de janeiro o juiz Nuno Salpico, que presidia ao coletivo de juízes, não foi parco nas palavras nem na sentença de 21 anos de cadeia (20 por homicídio e três por violência doméstica em cúmulo jurídico). Disse que a pena aplicada serviria, também, para reprimir o fenómeno da violência doméstica, a crescer em Portugal.

“O arguido atuou com culpa muito elevada e nada justificaria a forma como agiu, com frieza. Retirou, de uma forma brutal e com grande violência, a vida à vítima”, sustentou Nuno Salpico.

O juiz acrescentou que o arguido, durante meses, infligiu maus tratos à sua mulher, a nível físico e psicológico, com ameaças e injúrias, num contexto de divórcio. E defendeu que os tribunais devem punir com firmeza este tipo de comportamentos.

“O índice de mortalidade no contexto de violência doméstica estar a crescer no nosso país. Os tribunais têm de reprimir com muita determinação este tipo de crimes”, sublinhou.

Marcos Camargo, que antes de ser preso trabalhava como segurança em bares de diversão noturna, terá que pagar 80 mil euros à família da vítima. E assim que terminar a pena, deverá regressar ao seu País de origem, o Brasil.

Estas duas sentenças acontecem ao mesmo tempo que, segundo a comunicação social, quatro mulheres foram mortas pelos maridos. As vítimas tinham entre os 43 e os 77 anos de idade.

Crimes participados baixam, mas violência doméstica não

Uma média de cerca de 40 mulheres mortas por ano é o resultado de uma estatística que, segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), tem vindo a demonstrar números cada vez mais elevados. “Portugal, em relação aos restantes países da União Europeia, tem índices de criminalidade mais baixos e que, nos últimos anos, têm vindo a estagnar. Mas no que toca à violência doméstica isso não se verifica”, explica ao Observador o assessor técnico da direção da APAV, Frederico Marques.

Frederico Marques diz que “não é possível” saber se este aumento é revelador de um maior número de casos ou de um maior número de queixas, ainda assim “é um problema muito grave”. E os magistrados “tem mostrado uma maior sensibilidade em relação a isso”.

“A APAV não promove os direitos das vítimas em detrimento dos direitos dos infratores nem mantém uma postura de maior severidade para com eles”, ressalva Frederico Marques.

O facto de, em duas semanas, em Lisboa, existirem duas penas de 21 anos demonstra essa sensibilidade. Mas nem sempre é assim. “Nestes casos houve um homicídio. No entanto, o crime de violência doméstica é um crime cuja prova é muito difícil de obter”.

Nos casos que a APAV tem observado, por vezes é difícil provar os maus tratos ocorridos na “esfera da vida íntima do casal”. Também há casos em que as vítimas chegam à barra do tribunal e, “quem sabe se por medo”, preferem gozar do seu direito de não prestar declarações. “E o processo acaba por morrer”, refere Frederico Marques.

“Há ainda muitas condenações com penas suspensas, acabando por transmitir à comunidade em geral, ao agressor e à família da vítima um sentimento de impunidade. E isso é preocupante. Mas quando há um homicídio há uma maior sensibilidade”, constata.

O crime de violência doméstica é punível com penas de prisão de um a cinco anos de cadeia, ou de dois a oito em casos mais graves. Ainda assim, há magistrados que optam por acusações pelos crimes de ofensas à integridade física.

(artigo atualizado a partir do segundo subtítulo)