Título: “D. Pedro IV – A História não contada”
Autor: “Paulo Rezzutti”
Editora: Casa das Letras

d pedro IV

O D. Pedro IV de Paulo Rezzutti faz-nos reabrir o genial Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins, um dos grandes livros do nosso século XIX. Era em dias – mais uns – de grandes e traiçoeiras ilusões, dias em que, diz nesse livro o grande escritor português, se tinha visto “um romântico Byron morrer de febres em Missolonghi para que a Grécia obtivesse a faculdade de votar orçamentos errados em falsas câmaras burguesas.” (“Plus ça change, plus c’est la même chose”, foi uma frase cunhada nesse mesmo século pelo jornalista francês Alphonse Karr, o autor das Vespas que inspiraram as Farpas de Eça e Ramalho.)

“Soldados! Aquelas praias são as do malfadado Portugal: ali vossos pais, mães, filhos, esposas, parentes e amigos suspiram pela vossa vida e confiam nos vossos sentimentos, valor e generosidade. Vós vindes trazer a paz a uma nação inteira e a guerra somente a um governo hipócrita, despótico e usurpador.”

Assim falava “o Rei Soldado” aos seus homens, nas vésperas do desembarque dito do Mindelo, que dava início ao principal episódio da guerra civil que lavrava e lavraria em Portugal: o episódio capital que culminou em 1834 com a derrota e o banimento de D. Miguel I. “Levando-se em consideração que mais de 80% do exército libertador era formado por mercenários estrangeiros, aquela era, na realidade, uma peça de marketing”, comenta Rezzutti. Assim era. “D. Pedro – quem fala agora é Oliveira Martins – aprendera o vocabulário das ideias novas – mas só o vocabulário.” E acrescenta noutro passo: “Não me obrigueis a empregar a força para vos libertar!” Sumariamente, as proclamações (de D. Pedro) diziam isto, e a última frase é a mais significativa: “não me obrigueis a usar a força para vos libertar!” Eis aí, resumidas nestas palavras, se bem as meditarmos, a história da empresa, a filosofia do liberalismo, a suma de todas as contradições doutrinárias e morais: não me obrigueis a empregar a força para vos libertar!

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Rezzutti é um historiador paulista de créditos firmados – para usar, sem ironia, uma sibilina fórmula ainda recentemente usada nestas páginas para “damning with faint praise”. Tem estudado aturadamente o “Pedrão”, que era conhecido nas hostes miguelistas por “o brasileiro” e foi depois, para os brasileiros, o tirano português. Membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Rezzutti fez parte da equipa da arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel nos trabalhos de “exumação, estudo e preservação dos restos mortais” da família imperial brasileira (o que nos vale algumas descrições literalmente mórbidas e, no Caderno de Imagens de um livro que não é de ilustrações mas é profusamente ilustrado, imagens que talvez dispensássemos da caveira e das ossadas do Duque de Bragança).

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Juramento do príncipe Pedro à Constituição portuguesa, em 1821

Publicou dois outros livros sobre o Imperador, ambos dedicados ao seu duradouro e determinante concubinato com Domitila dos Santos do Canto e Melo, mãe da filha muito amada que seria a Duquesa de Goiás: Titília e o Demonão, Cartas Inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos e Domitila, a Verdadeira História da Marquesa de Santos. A relação dos dois foi, por assim dizer, escaldante e – sem desprimor para o trabalho de pesquisa e compilação de Rezzuti – não estava por contar nos seus traços mais relevantes, como quase tudo nesta biografia um tanto pé de chumbo que tem por subtítulo, com bastante exagero, “A história não contada – o homem revelado por cartas e documentos inéditos”.

Alberto Pimentel escreveu no seu já velhinho A Corte de D. Pedro IV (que Rezzutti, aliás, cita em duas ou três ocasiões): “Durante o reinado de D. Pedro II (do Brasil) li na Gazeta de Notícias aquellas famosas cartas que em 1896 apareceram reproduzidas num opúsculo muito raro na Europa. Famosas são, decerto, essas cartas, não só pela sua incorrecção gramatical como, principalmente, pela crueza pornográfica, pelo esbagaxamento afrodisíaco”. Etc. Poupo à estimada leitora alguns pormenores indecorosos que Pimentel aduz em abono da sua censura a uma “epistolographia” de uma “sensualidade tarimbeira, obscena, plebea”. São portas há muito escancaradas. Pretender o contrário não é culpa do autor, provavelmente. Commerce oblige.

D. Pedro IV era um Príncipe que se queixava ele próprio da sua falta de instrução, embora aparentemente não fosse desprovido de talento artístico, de destreza física e de acuidade financeira. O seu retrato como homem “fogoso”, valdevinos, amante das velocidades (não se contam as costelas que partiu nas suas correrias), irresoluto, voluntarioso e obstinado, generoso e parcimonioso ou mesmo avaro, liberal e despótico, violento e capaz de afetuosas ternuras paternais – estava, de facto, muito completamente feito antes de Rezzutti nos dar este contributo que pouco nos traz de novo, na minha pouco abalizada opinião.

Foi Rei fugaz de um Portugal que mal conhecia e que para sua desgraça ensinou os ‘brasileiros’ a detestar, no seu interesse e no que julgava o interesse da dinastia. Nunca reinou em Portugal: foi no Brasil que recebeu e renunciou em poucos dias à Coroa portuguesa. “De volta a Queluz” – título de um dos últimos capítulos deste livro – depois da expulsão de D. Miguel, “reinou” por pouco tempo antes de “vazar a última golfada de sangue” (O. Martins), mas apenas como regente da filha em quem abdicara, D. Maria II.

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Regresso de D Pedro I ao Rio de Janeiro, vindo da Bahia, a 4 de abril de 1826

Em nome dela e do “papel”, a Carta constitucional outorgada em 1826 na sua breve e distante passagem pelo trono, lutou contra o “usurpador”. “Eram vãos – diz O. Martins, que não é brando, diga-se de passagem, com a “histeria apostólica” de uma parte do mundo legitimista – os protestos lavrados contra D. Miguel. Que importava que na eleição dos procuradores às Cortes tivesse havido irregularidade e violências, mentiras, burlas? O exemplo das Cortes constitucionais posteriores tira toda a autoridade à acusação, hoje; e então tirava todo o peso às dissertações a maneira ignóbil por que a gente liberal se comportara no Porto, enquanto em Lisboa se aclamava o usurpador. O facto é que o historiador encontra nas assinaturas do auto de aclamação todos os nomes portugueses; e que na emigração vê apenas uma dúzia de nomes, se tanto, seguidos por três milhares de soldados anónimos. O carácter nacionalmente legítimo da usurpação é incontestável; o carácter jurídico é discutível; quanto a crimes, o terror anárquico de 34-38 pagou com uma dezena de assassinatos liberais cada assassinato miguelista …”

Do Ipiranga ao regresso

Antecedendo um longo epílogo dedicado a “Pedro, os seus amores e os seus frutos” (que, tanto uns como os outros, foram muitos) e umas “últimas palavras”, esse breve capítulo contém a maior parte das páginas dedicadas a Portugal nesta história. O livro é brasileiro e para todos os efeitos é ao Brasil que fundou como Estado independente, e ao mítico “grito do Ipiranga” de 1822, que a maior parte da vida e obra do Imperador está associada. Alberto Pimentel resumia assim uma parte dessa herança deixada ao Brasil: “Cimentou as bases da sua organização política como estado independente. Pôs a funcionar as engrenagens administrativas do novo império (…) Cortou antigos abusos de administração. Mandou escripturar regularmente o orçamento geral do estado. Introduziu economias consideráveis em todos os serviços públicos, a começar pelas despesas da coroa.”

Numa derradeira “carta aos brasileiros”, supostamente ditada por D. Pedro no leito de morte, o Imperador terá clamado: “Eu vos salvei da horrenda anarquia que devora vossos vizinhos.” Paulo Rezzutti anota que é interessante, sob este aspecto, que “antagonistas seus (…) não pouparam elogios a D. Pedro, colocando a seu favor factos benignos para o Brasil. A unidade territorial é um exemplo.” (Uma herança, antes de mais, portuguesa? O Brasil tem isso em comum com os outros Estados da chamada lusofonia.) Em Portugal, viu-se como o “vocabulário” tem consequências. A ‘vitória liberal” produziu a “única revolução social porque o nosso país tem passado desde o século XV’, no dizer de Alexandre Herculano, combatente nas hostes de D. Pedro (citado na História de Portugal, coordenada por Rui Ramos, onde a afirmação é documentada por extenso). A “nossa santa religião” que o “libertador” proclamava não estar ameaçada pelo “Governo constitucional”, foi o seu primeiro alvo.

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Abdicação de Pedro I do Brasil, a 7 de Abril de 1831

Escorraçado do Brasil que criara, D. Pedro foi tão ingratamente indesejado do Portugal novo como vãmente fora desejado do Portugal antigo o seu irmão D. Miguel, cujo fascínio Eça espelhou numa obra-mestra de concisão, uma dúzia de linhas nas primeiras páginas de ‘A Cidade e as Serras’: “Aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o D.Galião, descendo uma tarde pela Travessa da Trabuqueta, rente de um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos: — Oh Jacinto Galião, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras? E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o sr. Infante D. Miguel.”

Em D. Pedro IV não podia faltar o célebre episódio do Teatro de S. Carlos em que a carruagem do “libertador” foi apedrejada e o “libertador” objeto de uma valente assuada da populaça ilustrada que queria mais sangue miguelista. Escreve Rezzutti, numa versão da história muito próxima das outras que se conhecem, que “alguém teria ouvido vir do alto, do camarote onde D. Pedro se encontrava, a palavra canalha”, o que inflamou ainda mais os manifestantes. A lenda vai mais longe: a palavra teria sido proferida pelo próprio D. Pedro, increpando a revolta multidão que não o deixava falar: “Canalha, o mano Miguel é que tinha razão”.

Dois pontos de pormenor, um mais fútil do que o outro. Primeiro, em que hotel se hospedou D. Pedro em Londres? Rezzutti diz que no Claridge’s (que, como tal, só abriu em 1856); O. M. e Pimentel dizem que no Hotel Clarendon, o que parece mais certo. Em segundo lugar, escreve o autor de D. Pedro IV que “o actual Chefe da Casa de Bragança, descendente de D. Miguel, chegou a questionar num documentário televisivo o que D. Pedro tinha ido fazer ao país”. O actual Chefe da Casa de Bragança é descendente de D. Miguel, é certo – mas também de D. Pedro.