É incómodo, irritante até. Muda-se de um canal de informação para um só de filmes. Ou de séries, tanto faz. Um abrir e fechar de olhos é o suficiente para decidir se continuamos a ver ou não. Caso seja não, carregamos na tecla +, avançamos um canal e revemos a cena de há menos de um segundo. É o agádê, dizem-nos. Pois bem, o hd é a invenção mais monocórdica da história televisiva. Há ali uma fase de 20-e-tal canais em que somos transportados à força para o passado, irra. Afasta de mim esse cálice.

E então? Ora bem, há uns laivos de hd no Portugal-Letónia de qualificação para o Mundial-2018. Sem categoria para ombrear com a nossa rapaziada, os letões entram rijos que dói. Aos 46 segundos, Nani apanha forte e feio. Aos 83 segundos, é a vez de Ronaldo ser vítima de um encontrão sem bola. Agádê ao quadrado isto é magia. Portugal assume o favoritismo desde o início, com pressa de golear como se a Letónia fosse Andorra ou Ilhas Faroé, clientes de um set sem resposta (6-0) nos dois últimos jogos de apuramento. Só que a pontaria de João Mário, Ronaldo e Nani esbarra sempre na figura do guarda-redes Vanins. A solução para desbloquear este problema é um penálti. Vai daí, aos 28 minutos, Nani combina o dois-um com Ronaldo e é carregado dentro da área. O árbitro escocês apita penálti e Ronaldo transforma o castigo, sem enganar Vanins, que ainda toca na bola. Um-zero é o resultado ao intervalo. Justo, justíssimo.

Para a segunda parte, o método de derrubar o muro letão é o mesmo. Só da marca dos 11 metros. Aos 58′, André Gomes cai e o árbitro aponta para a marca. Ronaldo, sempre ele, avança cheio de confiança. Desta vez, engana Vanins. A bola vai ao poste, embate no corpo do guarda-redes e sai de fininho, como se nada fosse. Pela primeira vez na história, a selecção tem 50% de eficácia nos penáltis no mesmo jogo (bis de Eusébio à Coreia do Norte em 1966 e bis de Figo à Moldova em 2001, curiosamente também no Algarve). Já se sabe como é. Ronaldo falha um lance desta natureza e como que acorda para o jogo. Nos minutos seguintes, é vê-lo a desbravar terreno como nunca para se redimir do erro. Que, bem vistas as coisas, é um erro maiúsculo. Porque é o quinto penálti falhado pela selecção em dez tentativas e porque a Letónia se agiganta.

A inequívoca prova disso é o empate caído do céu, por Zjuzins. O primeiro remate de Garbovs bate em Fonte e o pontapé-ressaca do suplente entra sem apelo nem agravo na baliza de Patrício, imbatido há 308 minutos na fase de qualificação. No momento em que a bola passa a linha, o relógio marca 66’46”. Uma das qualidades de Portugal de Santos é a reacção imediata. Vê-se num 2-1 à Sérvia, na Luz (depois do pontapé de bicicleta de Matic, o 2-1 de Coentrão). Vê-se no 2-1 de Moutinho, em Belgrado. Vê-se no 1-1 de Nani, 2-2 de Ronaldo e 3-3 de Ronaldo vs. Hungria, no Euro. Quando se trata de cair e levantar, Portugal parece um jogador de subbuteo: nunca cai em definitivo, só se desequilibra ligeiramente.

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No Algarve, onde a selecção é invencível desde sempre (a estreia é no São Luís de Faro em 1977), com um total de nove vitórias e três empates, mais um caso paradigmático de golo deles-golo nosso. O relógio já marca 68’58” quando William apanha o cruzamento da direita de Quaresma e desata o nó. Faz bem, o Oceano. Oceano? Sim senhor, Oceano é a alcunha dada por Quaresma a William. Há muito, muito tempo. Antes ainda da invenção do hd. Oceano ou William, o certo é que o homem dissera isto há meio ano, em entrevista à agência de notícias espanhola EFE: “ Sou como uma bússola, procuro sempre facilitar as coisas. Sou eu que digo: ‘agora a equipa vai para a direita, agora vai para a esquerda’. Ponho o ritmo do jogo. Só que tenho de fazer mais golos, tenho de melhorar o jogo de cabeça, de definir melhor esse tipo de lances.” Check.

Com um Quaresma inspirado, do seu pé sai o cruzamento para o 3-1 de Ronaldo, num remate acrobático com o pé direito, ao segundo poste. É o 11.º bis do capitão na selecção (atrás dele, Eusébio e Pauleta com seis). Para Quaresma, é a 16.ª assistência ao serviço de Portugal, encostado a Moutinho (17) e Nani (18), longe ainda do líder Figo (40). A Letónia só vê jogar, nada mais. E livra-se do 4-1 aos 89′, porque Ronaldo falha o encosto à boca da baliza a um cruzamento de Renato. E livra-se do 4-1 aos 90′, porque Ronaldo acerta a bola na trave na sequência do enésimo centro bem medido de Quaresma. O quatro-um chega aos 90’+1, com dois intérpretes insuspeitos: Guerreiro levanta com o pé esquerdo para a área e Bruno Alves eleva-se bem para somar o seu 11.º golo na selecção. Impressionante. E o 5-1 é adiado sine die porque o árbitro apita para o fim no preciso instante em que Quaresma está lançado. Tudo bem, guardamos esse golo para o próximo jogo, com a Hungria, em Março.

Estádio Faro/Loulé, Algarve
Árbitro: Madden (Escócia)
PORTUGAL: Patrício; Cancelo, Fonte, Bruno Alves e Guerreiro; João Mário (Gelson, 72′), William, André Gomes (Renato 88′) e Nani (Quaresma, 65′); Ronaldo e André Silva
Seleccionador: Fernando Santos (português)
LETÓNIA: Vanins; Freimanis, Jagodinskis, Gorkss e Maksimenko; Gabovs, Laizans, Tarasovs e Kluskins (Vislakovs, 79′); Rudnevs (Gutkovskis, 87′) e Ikaunieks (Zjuzins, 61′).
Seleccionador: Marian Pahars (letão)
Marcadores: 1-0, Ronaldo (28′, gp); 1-1, Zjuzins (68′); 2-1, William (70′); 3-1, Ronaldo (85′); 4-1, Bruno Alves (90’+1)
Nota: Ronaldo falha penálti, ao poste (59′)