Foi eleito há menos de uma semana mas já começam a aparecer os primeiros sinais de avanços e recuos entre Donald Trump, candidato presidencial, e Donald Trump, Presidente eleito. Em seis dias deu duas grandes entrevistas, ao Wall Street Journal e ao programa “60 minutes”, da CBS, e já começou os contactos diplomáticos evidenciando quem vão ser os seus aliados mais próximos na Europa: o primeiro político estrangeiro que recebeu depois da eleição foi o britânico Nigel Farage, líder interino do UKIP e um dos principais impulsionadores do Brexit.

Nas duas primeiras entrevistas que deu a meios de comunicação norte-americanos, Donald Trump deu umas luzes sobre quais vão ser as suas prioridades, promessas e garantias. Disse que iria renunciar ao salário anual de 400 mil dólares do Presidente, e que o seu salário enquanto chefe da Casa Branca seria de apenas um dólar (o mínimo exigido por lei). O que avança e o que cai?

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Os recuos

Obamacare. Afinal, havia partes boas. O plano de reforma do sistema de saúde de Barack Obama foi uma das principais bandeiras do candidato republicano durante a campanha eleitoral, tendo mesmo prometido acabar com o Obamacare logo no seu primeiro dia na Casa Branca. Não será bem assim. Agora, Donald Trump diz estar disponível para manter algumas medidas do programa.

“Ou será corrigido ou revogado e substituído”, disse Donald Trump ao Wall Street Journal na primeira entrevista depois de ser eleito. O milionário justificou esta mudança de atitude com o encontro que teve na quinta-feira com Barack Obama, que lhe terá pedido para reconsiderar a prometida revogação integral do programa que procura tornar a saúde mais acessível aos americanos que têm dificuldade em aceder à rede de hospitais e clínicas existente no país. “Disse-lhe que ia analisar as suas sugestões e, por uma questão de respeito, vou fazê-lo”, explicou Trump àquele jornal.

E identificou mesmo duas medidas do Obamacare com as quais concorda: a possibilidade de os filhos poderem usufruir do seguro de saúde dos pais até aos 26 anos e a proibição de as seguradoras recusarem cobertura a pacientes com base em doenças existentes. Mas se o Obamacare pode ficar reduzido a pouco mais do que nada (se o Congresso, de maioria republicana, aprovar), Trump não deverá tocar noutras leis importantes da saúde da administração Obama, como é o caso da MACRA (Medicare Access and Chip Reauthorization Act 2015, no original), segundo avança a Forbes. Trata-se de legislação que muda a forma como a Medicare paga aos médicos, ligando os reembolsos à qualidade do serviço prestado. Segundo a Forbes, é uma medida que agrada a democratas e republicanos por poupar dinheiro e melhorar a qualidade.

Na campanha, e no programa eleitoral, no entanto, o discurso de Trump era outro. “No primeiro dia da administração Trump pediremos ao Congresso que revogue imediata e completamente o Obamacare”, lia-se.

Lock her up? Afinal, Trump não quer prejudicar Hillary. Donald Trump também está a repensar a promessa feita em direto, num debate televisivo, de promover uma investigação especial a Hillary Clinton. Os seus apoiantes passaram toda a campanha a gritar “Lock her up” em comícios e o próprio candidato republicano fartou-se de falar na “Crooked Hillary“, mas, afinal, Trump não quer “prejudicá-la”, nem ao marido Bill Clinton, e poderá não nomear um procurador especial para investigar Hillary Clinton pelo caso dos emails.

Foi pelo menos isso que disse na entrevista ao programa da CBS, referindo que se quer “concentrar nos empregos, nos cuidados de saúde, na fronteira e na imigração, e fazer um projeto de lei sobre imigração que seja realmente bom”. Estas são as prioridades, não mandar prender a ex-adversária. Não que não tenha feito “coisas muito más” ao usar servidores de correio eletrónico privados para tratar de assuntos oficiais quando era secretária de Estado (2009-2013) — isso não retira –, mas agora as prioridades são outras.

Mas há outras promessas de campanha que vão mesmo para a frente.

Os avanços

Um muro que pode ser uma vedação. Quando prometeu construir um muro na fronteira dos EUA com o México, Donald Trump, que é também um empresário do setor do imobiliário e construção civil, quis realmente dizer isso mesmo — embora insista no tom jocoso. “Sou muito bom nisto, chama-se construção”, disse na entrevista ao programa televisivo “60 minutes”, ao mesmo tempo que admitia que em algumas zonas da fronteira poderia ser apenas uma vedação, como sugeriram alguns congressistas republicanos, em vez de um muro. “Para certas áreas sim [a vedação chega], mas noutras o muro é mesmo mais apropriado”, disse na resposta à jornalista.

Ou seja, simbólico ou não, o muro é mesmo para avançar. A verdade é que a enorme extensão da fronteira dos EUA com o México, que tem mais de 3.200 km, já está demarcada com uma vedação, embora não esteja totalmente fechada. O projeto de construir um muro para fechar totalmente a fronteira e travar a imigração ilegal não é de agora, nem foi inventado por Donald Trump, mas nunca ninguém o executou.

Deportações. O alvo são 2 ou 3 milhões de imigrantes ilegais com cadastro. Foram o alvo da campanha e mantêm-se o alvo agora: é para os cerca de 11 milhões de imigrantes que vivem nos Estados Unidos sem documentos de residência legais que Donald Trump está a olhar e é sobre eles que pretende agir. Sobretudo perante aqueles que apelidou de “bad hombres“, os imigrantes ilegais que têm cadastro. Serão entre 2 a 3 milhões, disse.

“O que vamos fazer é pôr as pessoas que são criminosas, que têm cadastro, membros de gangs, traficantes de droga, e temos muita gente dessa — provavelmente dois milhões de pessoas, mas podem mesmo ser três milhões — vamos expulsá-los do nosso país ou prendê-los, mas vamos expulsá-los do nosso país, porque estão cá ilegalmente”, afirmou na entrevista televisiva. Só depois, quando a “fronteira ficar segura”, Trump dirá o que os serviços de imigração vão fazer com os restantes imigrantes sem documentação. “Vamos garantir a segurança da nossa fronteira”, assegurou.

Depois da vitória de Donald Trump, o Governo mexicano veio novamente garantir que não iria financiar a construção do muro. Um dos principais responsáveis pela equipa que fará a transição entre as presidências Obama e Trump, Newt Gingrich, quando questionado sobre o muro, limitou-se a dizer que este foi “um grande instrumento de campanha”. Mas deverá ser mais do que isso.

Pró-armas e anti-aborto. Donald Trump anunciou já que vai nomear juízes para o Supremo Tribunal que sejam contra o aborto e favoráveis à posse de armas de fogo. “Os juízes serão antiaborto”, explicou durante a entrevista à CBS, ao mesmo tempo que garantiu que serão “muito favoráveis à Segunda Emenda” da Constituição norte-americana, que garante o direito de cada cidadão dos Estados Unidos possuir uma arma de fogo.

Clima. Acordo de Paris vai mesmo para o lixo. Trump quer mesmo que os Estados Unidos se libertem do Acordo de Paris, que visa impedir o aumento da temperatura mundial e combater as alterações climáticas. O acordo mundial, que foi visto como um grande passo para combater as alterações climáticas, entrou em vigor apenas quatro dias antes das eleições.

Trump sempre se mostrou cético em relação ao aquecimento global, chegando mesmo a afirmar publicamente tratar-se de “um mito” inventado pelos chineses para prejudicar a competitividade da indústria norte-americana. Já durante a campanha, mostrou-se decidido a pôr um travão ao processo desencadeado pelo Acordo de Paris, dizendo que pretendia, “no mínimo”, “renegociar os compromissos”.

A incógnita

A incerteza que está no topo das preocupações da finança internacional, contudo, é outra: que sequência vai dar Donald Trump às críticas que fez, durante a campanha, às políticas de Janet Yellen, a presidente da Reserva Federal?

Apesar de ter dado uma entrevista à CBS e ao “The Wall Street Journal” após a eleição, Trump ainda não abordou diretamente esta questão, que tem implicações enormes para os mercados internacionais e para a economia global.

A Reserva Federal é o banco central que gere a emissão do dólar e as respetivas taxas de juro. Trata-se de um órgão independente do poder político mas o cargo de presidente, atualmente nas mãos de Janet Yellen, é de nomeação presidencial — foi Obama quem escolheu Yellen para substituir o antigo presidente, Ben Bernanke.

Donald Trump não pode despedir Janet Yellen por discordar da sua política. Apenas poderá escolher outra pessoa para o cargo quando o mandato de Yellen terminar, em 2018, não permitindo uma recondução. Mas o receio de vários analistas é que Janet Yellen acabe por se demitir do cargo caso as críticas de Trump se mantenham agora que foi eleito Presidente dos EUA.

O risco para os mercados, em concreto, é que Janet Yellen já confirmou os pergaminhos que trazia quando chegou ao cargo e que já a apontavam como alguém que preferiria sempre pecar por excesso de estímulos do que por carência. Yellen voltou a confirmar essa tendência em setembro, quando muitos analistas previam uma subida dos juros e a Reserva Federal optou por não seguir esse caminho.

A política de injeção de liquidez e de juros baixos, que Donald Trump disse na campanha “deviam envergonhar” Janet Yellen, é muito importante para sustentar as bolsas. Uma retirada dos estímulos (e subida das taxas de juro) mais brusca do que o previsto causaria grandes desequilíbrios na economia mundial. O dólar pode subir, as bolsas caírem e os juros da dívida subirem, como já se está a ver.

Até agora, do Presidente-eleito Trump, ainda não se ouviu uma clarificação sobre esta questão crucial para a economia mundial. Contudo, o “The Wall Street Journal” citou no final da semana passada um conselheiro de Trump que adiantou que o novo Presidente não irá procurar a saída imediata de Yellen, via demissão, mas que, com Trump, Yellen não será reconduzida.