Título: Tarass Bulba, o Cossaco
Autor: Nikolai Gogol
Editora: E-Primatur
Páginas: 248
Preço: 17,90€

Tarass Bulba, o Cossaco foi publicado em março pela E-Primatur

Começando pelo princípio: Tarass Bulba é um conto escrito por Nikolai Gogol em 1835 e expandido pelo escritor, em 1842. Nele narra-se a história de Tarass Bulba, um coronel cossaco que decide levar os seus dois filhos, Ostarp e Andrii, primeiro para a Sech, a cidade-base cossaca, e depois para uma guerra contra os polacos na fronteira do território que viria a ser a Ucrânia, onde Gogol nasceu. A E-Primatur optou por traduzir do russo ambas versões pela primeira vez, numa decisão absolutamente louvável e de um rigor pouco comum em Portugal, permitindo-nos assim acompanhar a evolução da escrita de Gogol, bem como compreender melhor alguns aspetos da história que, pela sua repetição, supressão ou adição, nos podem revelar o que interessaria ao escritor explorar, bem como aquilo que terá mudado nesses sete anos, reduzindo-se assim, de certa forma, a estranheza da obra. Feito o merecido elogio editorial, é apenas de lamentar que não se tenha optado por manter a tradutora em ambos os casos, uma vez que, com essa mudança, o leitor fica sem perceber quais os excertos que se mantiveram inalterados de uma versão para a outra e quais as passagens que sofreram pequenos retoques.

A estranheza de Tarass Bulba pode ser diluída por uma edição competente como esta, mas não pode nunca ser apagada. É precisamente esta invencível estranheza que torna o conto tão interessante. No entanto, é também esta estranheza que leva a que muitas das coisas que foram escritas ao longo do tempo sobre Tarass Bulba consistam apenas num arremessar de chavões bem-sonantes, falando-se, muitas vezes ao mesmo tempo, do romantismo, do moralismo, do realismo, do patriotismo e do nacionalismo de um escritor satírico e grotesco, percursor do surrealismo e simpatizante do absurdo. Diz-se sempre ainda, numa repetição do argumento da censura russa à edição de 1835, que a primeira versão é claramente pró-ucraniana e a segunda claramente pró-russa. O que é que tudo isto quer exatamente dizer, nunca se percebeu muito bem.

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A opinião de Gogol acerca da história de Tarass Bulba parece ser tão difícil de domar quanto o próprio coronel cossaco. Se, por um lado, o autor parece admirar os combatentes que abandonam pais, mulher e família para preservar a fraternidade cossaca e a Igreja Ortodoxa, por outro lado, a insensatez e a violência cossaca é descrita com incómodo e repugnância, particularmente na versão de 1835, prévia à censura russa. Se Gogol parece simpatizar com uma defesa da fé cristã, por outro lado, os guerreiros que a defendem não parecem saber muito bem em que é que consiste o Cristianismo. Todos acham que “deus e as sagradas escrituras mandam que arriemos nos bussurmenos” (p.184), “toda a Sech rezava na igreja e estava disposta a defendê-la até à última gota de sangue, se bem que não quisessem ouvir falar em jejum nem em abstinência” (p.183) e brinda-se entre os cossacos, antes de se começar uma batalha contra os católicos polacos, a “todos os cristãos que há no mundo” (p.109). O Cristianismo parece ser, então, apenas uma parte vaga da identidade cossaca e que consiste essencialmente em assassinar todos os muçulmanos, judeus e católicos que lhes aparecerem por diante e, por bizarro que pareça, em sentarem-se um minuto antes de iniciarem uma viagem.

A segunda versão de Tarass Bulba, para além de corrigir alguns lapsos narrativos e colocar ainda mais em evidência o enorme virtuosismo de Gogol, irá desviar o foco da insensatez dos cossacos para o seu heroísmo. O autor escreverá longos monólogos de louvor à causa cossaca e irá narrar as batalhas com a exaltação, a violência e o grafismo das epopeias de Homero (“Sim, os campos lavrados e os caminhos ficariam cobertos de ossos salientes esbranquiçados, generosamente regados pelo sangue dos cossacos, sob as carroças, as lanças e os sabres despedaçados. A perder de vista espalhar-se-ão cabeças, com as tranças torcidas e ensopadas de sangue seco e com os bigodes pendurados. Os abutres, lançando-se, vão arrancar-lhes os olhos. Mas existe glória eterna neste vasto leito de morte”).

Esta mudança de tom basta para que muitos críticos — habituados a confundir a voz do escritor com a do seu narrador e a reduzir as pessoas e o mundo em que vivem a uma palavra ou, quando muito, a uma teoria geral que simplifique as coisas — vejam nisto o fervilhar do sangue patriota de Gogol. Mas ao fazê-lo, não estão apenas a ignorar o papel fundamental da censura russa na segunda versão da história, o que já seria problemático. Assumir que a voz do narrador é a voz de Gogol é não perceber que Gogol está, em Tarass Bulba, a mostrar que não somos narradores fiáveis da nossa história e da história do nosso povo, não sendo, portanto, negligenciável que, um ano antes de escrever Tarass Bulba, tenha abandonado definitivamente o seu projeto de escrever uma história do território a que hoje apelidamos de Ucrânia.

Gogol mostra repetidas vezes que não podemos levar a sério o narrador quando este louva o heroico povo cossaco. O narrador de Tarass Bulba está demasiado próximo dos seus para perceber que não faz sentido descrever os polacos como impacientes quando são os cossacos de sangue-frio que não veem o cerco que montaram triunfar por, fartos de esperar, se embebedarem e adormecerem, quando são os cossacos de sangue-frio que decidem começar uma guerra porque alguém lhes veio contar a absurda história de que os padres polacos andam em carroças puxadas por cristãos ortodoxos em vez de cavalos e que as judias “costuram saias para si com as vestes dos popes” (p.51). Em vez de perceberem que este é um esquema para os levar a abandonar a sua fortaleza, irão iniciar um banho de sangue. Todavia, há críticos que não conseguem reconhecer na caracterização dos cossacos como frios e ponderados um exemplo da sátira que gostam de evocar a propósito de Gogol no início dos seus artigos, não percebendo a ironia de passagens como esta onde se lê que estes, “nos casos importantes, nunca se deixam levar pelo primeiro impulso” (p.51).

Derivam, aliás, do mesmo erro as acusações de anti-semitismo feitas a Gogol a propósito de Tarass Bulba, que veem um ataque aos judeus por parte do escritor em passagens onde se lê que Yankel se esforçava por “conter essa sua ambição eterna por ouro que, como um verme, serpenteia sempre pela alma de um judeu” (p.219). Ler nesta passagem alguma espécie de antissemitismo de Gogol é, assim, tresler o conto, uma vez que, se nele o povo judeu é sempre acusado pelo narrador de cobiça e de indecência, em nenhum momento um único membro dessa classe tem qualquer comportamento que permita levar a sério a veracidade dessas acusações.

Quando os cossacos cercam Dubno, a certa altura, fala-se da beleza da noite no cerco. Confiar cegamente no narrador e ler Tarass Bulba como um louvor arrebatado do povo cossaco (que Gogol, evidentemente, muito estimava) é exatamente o mesmo que ver nesta noite um cenário idílico sem ver que a beleza vem em grande parte de um incêndio ateado por este valoroso povo em que aldeias inteiras ardiam com a sua população lá dentro.