“Precisamente dois meses depois de ter tomado posse como líder do PSD”, Rui Rio voltou à residência oficial do primeiro-ministro, em São Bento, pela segunda vez em dois meses. A primeira, logo depois de ser eleito em congresso, serviu para dar o tiro de partida para as negociações sobre os dossiês da descentralização e dos fundos comunitários do Portugal 2030. A segunda vez, esta quarta-feira, foi para dar como finalizadas as conversas e fechar aqueles que são os primeiros acordos de regime entre PS e PSD desde 2006.

Não houve assinatura mediática à frente das câmaras, e os documentos — a que chamaram “declarações conjuntas”, a fazer lembrar as “posições conjuntas” assinadas em 2015 entre o PS e os partidos da esquerda — apareceram assinados e rubricados.  Não pelos líderes dos partidos, mas pelos ministros e vices do PSD responsáveis por cada área. Ainda assim, foi António Costa e Rui Rio que deram a cara, e o aperto de mão, pelo feito quase-histórico. O PCP assistiu à distância e não gostou do que viu: acordo teve “inegável significado político”. E mais: o significado político não só é inerente à “relevância política das matérias em causa” no acordo, mas na “ostensiva visibilidade e notoriedade que se lhe decidiu atribuir”.

António Costa, contudo, rejeitou qualquer “facadinha nas costas” dos parceiros parlamentares do Governo, e disse que havia espaço para tudo e todos. Lado a lado, Rio e Costa falaram à vez e responderam a três perguntas dos jornalistas também à vez, mas não desafinaram. Um falou mais sobre a descentralização, o outro sobre os fundos. Os dois concordaram que o interesse nacional tem de estar acima do interesse dos partidos. E que há matérias onde tem de haver compromissos políticos alargados. Anotamos, aqui, o que os dois disseram e quiseram dizer.

Quanto vale este acordo politicamente?

Rui Rio: “Se me perguntarem se este acordo é bom para o PSD eu diria que isso tem pouco interesse. O acordo é bom para Portugal, e por isso é bom para o PSD. Quando se pensa o contrário, está-se a pensar mal: quer estejamos no governo, quer na oposição o nosso foco tem de ser Portugal e eu estou contente por Portugal ter ganho.”

António Costa: “Não devemos confundir os diferentes planos. Este Governo resulta do facto de o PS ter assinado posições conjuntas com o PEV, PCP e Bloco de Esquerda. É com base nessa solução parlamentar que este Governo existe e governa.”

Em matéria de cálculo político, os dois líderes tentam sacudir a pressão do momento. Rui Rio cola-se ao politicamente correto, dizendo que o seu cálculo é apenas o do país, recusando ter uma intenção política com uma aproximação ao PS de António Costa e, com isto, ao centro político onde estão os votos que decidem eleições. O líder socialista tem outro peso sobre os ombros: os parceiros de esquerda não ficarão incomodados com esta aproximação quando Rio ainda nem aqueceu o lugar (só foi eleito presidente do PSD há dois meses)? Sim, e tanto PCP como BE  já fizeram críticas a esta escolha do Governo socialista que conta com os seus apoios para ter maioria no Parlamento nas matérias decisivas.

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Por isso mesmo, António Costa separou as águas, garantindo que o que tem com a esquerda é uma “base” em que o Governo sustenta a sua existência. Também não terá sido por acaso que na reunião para finalizar o acordo chamou também para a mesa o coordenador no Governo da “geringonça”. O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, não é só um dos maiores entusiastas da atual solução governativa dentro do Executivo como é ele que ao longo destes três anos tem gerido no Parlamento os equilíbrios necessários entre PS, PCP, BE e Verdes.

Dois descentralizadores entram… numa sala para fazer um acordo

Rui Rio: “O primeiro pilar são competências que vão ser passadas para as autarquias locais. Quando estamos mais perto do problema conseguimos resolver melhor e mais barato (…) Portugal tem uma estratégia efetiva de descentralização a médio prazo.”

Ficou a cargo de Rui Rio falar do dossiê que lhe é mais caro — e já não é de hoje — e aproveitou para afirmar o seu ponto. Descentralizar poderes da administração central para as autarquias locais é aproximar os cidadãos do Estado. Este processo era reclamado por Rui Rio há muito e também por António Costa, no encontro de posições mais relevante e que se tinha evidenciado já quando ambos presidiam aos destinos dos municípios de Lisboa e do Porto.

Rio nunca escondeu que pretendia até ir mais longe, voltando a estar próximo de Costa sobre a necessidade de dar passos no sentido de uma espécie de regionalização. Ou como este novo acordo lhe chama: a “reforma da organização subnacional do Estado”. Esta ficou empurrada para a próxima legislatura, embora o debate de especialistas sobre o tema esteja concluído ainda antes das legislativas. O primeiro-ministro não falou do capítulo da descentralização nas declarações aos jornalistas, concentrando-se sobretudo na matéria dos fundos comunitários.

Fundos. Afinal, só querem mostrar força em Bruxelas

António Costa: “As forças políticas que cada um de nós [PS e PSD] representa têm uma capacidade de influência própria no Parlamento Europeu, havendo assim uma posição que fortalece Portugal na esfera negocial.”

Rui Rio: “Pretendemos reforçar a posição de Portugal em Bruxelas (…) Os impostos são matéria de soberania nacional, mas podem ser lançadas taxas sobre movimentos financeiros, plataformas digitais, multas por violação de direitos da concorrência e os próprios orçamentos nacionais podem aumentar o seu contributo.”

Rui Rio e António Costa explicaram genericamente em que consistia o acordo que formalizaram para os fundos estruturais do próximo quadro plurianual e concordaram em tudo: a ideia é apenas “reforçar a posição de Portugal em Bruxelas”, como disse Rio. E “fortalecer Portugal na esfera negocial” ao surgir em Bruxelas com o Governo e a oposição portuguesa a falar a uma só voz, como disse Costa.

Rio sublinhou que em discussão está apenas a primeira fase da negociação, sendo que só mais tarde, depois de 2021 é que “entramos na segunda fase em que decidiremos como é que se vai afetar o dinheiro”. A ideia, para já, é apenas assegurar que Portugal não vai ficar prejudicado no tamanho do envelope financeiro global pela saída do Reino Unido da UE e por causa do aumento das despesas previstas na área da Segurança, Defesa e Migrações. Para isso, Costa e Rio concordaram com a criação de novos impostos europeus para arrecadar mais receita de forma a compensar as eventuais perdas. O objectivo é só um: não aceitar uma verba inferior à do quadro de Portugal 2020.

Rio e Costa a uma só voz para manter a via aberta para mais acordos noutros temas

António Costa: “É absolutamente essencial que matérias como a reforma do Estado sejam alvo de acordos políticos alargados. O país tem de se habituar a ser capaz de construir compromissos políticos. Temos de saber unir esforços para consensualizar aquilo que pode ser consensualizado, porque uma estratégia de desenvolvimento não pode ser do Governo, do maior partido da oposição, mas do conjunto da sociedade portuguesa”.

“A democracia é por natureza o regime do compromisso, temos de perceber quais são as matérias sobre as quais deve haver um entendimento, e é desejável que haja entendimento, e as matérias em que é normal que haja divergência e que cada um mantenha a sua própria identidade para assegurar aos portugueses a liberdade de escolha em cada momento. Não é pelo facto de termos assinado dois acordos hoje que deixamos de ter identidade própria: o dr. Rui Rio a liderar a oposição e eu a liderar o Governo.”

Rui Rio: “[O PSD está disponível para] todos os acordos que, para Portugal os ter, necessita de acordos entre partidos. Ou seja, o PSD está disponível para todas as reformas estruturais que ninguém é capaz de fazer sozinho e que precisa dos outros para que possam ser feitas. Uma coisa são as matérias de governação que os governos podem e devem resolver, outra coisa são as matérias que todos sabemos que, se não houver entendimento, Portugal não as consegue ter. Portugal tem de estar em primeiro, por isso o PSD está disponível para colaborar com todos para que Portugal consiga ter o que só com todos é possível.”

Portugal primeiro, os partidos depois. Foi este o lema que Rio e Costa partilharam esta quarta-feira. E pode não ficar por aqui. Além dos temas da descentralização e dos fundos comunitários para a próxima década, os dois fizeram questão de deixar a porta aberta para repetir o feito noutro temas — desde que sejam temas de “interesse nacional”, e que “transcendam a legislatura”.

António Costa deu o exemplo das grandes obras, como um aeroporto ou uma linha de comboio, que são investimentos “para o próximo século” e que, como tal, devem exigir o consenso da grande maioria da Assembleia da República. Se não for possível o entendimento com dois terços da Assembleia, então que seja entre o partido que está atualmente no Governo e o partido que está atualmente a liderar a oposição, e que de hoje para amanhã pode passar para o Governo. A reforma do Estado é outro exemplo que deve envolver “todos”. Rui Rio não especificou temas, mas foi claro que estará disponível para se entender “com todos” nos casos das reformas que não podem ser feitas por um só partido.

E porque motivo não se viu o momento da assinatura dos acordos?

Rui Rio: “Isso é por causa do décor.”

 António Costa: “Olhe uma boa imagem, um aperto de mão. Vale mais do que muitas assinaturas”

Não houve registo do momento em que ambas as partes assinaram os acordos, mas a verdade é que nos dois documentos apenas constaram as assinaturas dos negociadores: o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e o presidente dos autarcas do PSD Álvaro Amaro (para a descentralização); o ministro do Planeamento, Pedro Marques, e Castro Almeida, vice do PSD (para os fundos comunitários).

António Costa e Rui Rio acabaram por dar a cara e um aperto de mão perante os jornalistas que, disse o primeiro-ministro “vale mais do que muitas assinaturas”. É mais ou menos a máxima que moveu os comunistas quando, em 2015, negociaram com Costa a posição conjunta que deu origem ao Governo socialista: o PCP não queria texto, não queria assinar nada, nem cerimónia e, só a custa, consentiram uma fotografia. A palavra bastava. Mas se aqui é possível a comparação, no resto, Costa fez questão de separar águas entre o que tem com o PSD de Rio e as esquerda. Até ao ponto de os acordos firmados serem batizados de “declarações conjuntas”, em vez de “posições conjuntas” como aconteceu quando nasceu a “geringonça”.

Qualquer dicionário mostra que há diferenças, entre o os dois termos escolhidos: “declaração” para afirmar factos, posição” para firmar uma “atitude”. Mas o aperto de mão a Rio ficou dado e isso vale muito para Costa, como se ouviu em São Bento.