A gestação de Mati, o álbum de estreia de Selma Uamusse, foi longa. Em 2010, a cantora que nasceu em Moçambique, que veio para Portugal com seis anos e que começou a cantar de forma mais profissional enquanto elemento dos Wraygunn foi mãe pela primeira vez. Curiosamente, foi aí que decidiu que queria arriscar, “que queria ser cantora [a solo] mas não ia falhar como mãe”, como contou numa primeira apresentação do álbum, no clube B.Leza, reservada a amigos, músicos e imprensa. Dois anos depois, em 2012, Selma Uamusse foi mãe pela segunda vez. A decisão de gravar um álbum não demorou mais de um ano. Esta sexta-feira, esse disco que começou a ser pensado entre finais de 2012 e 2013 chega às lojas e plataformas de streaming. Foi gravado entre Moçambique e Portugal e é um disco com o qual a cantora se sente “abençoada”, por ter feito “o percurso contrário” ao que é habitual:

Vivemos numa época em que os músicos têm de fazer discos para poderem tocar. Acho que consegui ter o privilégio de desde sempre fazer um processo que acho que faz muito sentido: tocar, tocar, tocar e tocar, só depois gravar. A maneira como este Mati foi gravado foi tão convicta que acredito que o trabalho do produtor tenha sido mais tranquilo”, afirmou a cantora, em conversa com o Observador.

Dizer “tocar” quatro vezes não é acaso nem exagero. Serve para reforçar que, ao contrário do que é habitual na indústria musical, Selma Uamusse tocou mesmo em muitos palcos antes de editar o primeiro álbum. Passou por festivais como o Bons Sons, Rock in Rio, Vodafone Mexefest, MIL, Festival Músicas do Mundo (FMM), Med e pelo parisiense MaMa. Tocou em sítios como a Casa da Música, no Porto, o B.Leza, o Centro Cultural de Belém e o Teatro da Trindade, em Lisboa, além de salas de concertos um pouco por todo o país (em Ovar, Ponte de Lima, Guarda, Amarante, Tondela, Bragança e por aí fora).

Paralelamente aos concertos, Selma Uamusse, que também partilhou palco e canções com Rodrigo Leão, Samuel Úria e Medeiros/Lucas, passou algum tempo a trabalhar no seu disco a solo. Começou por fazê-lo com o pianista e produtor musical Pablo Lapidusas, que conheceu quando deu um concerto para a associação juvenil Conexão Lusófona, da qual Lapidusas era diretor musical. “Achei muito interessante a forma como ele conseguiu fazer uma direção musical de um evento muita virada para África. Demo-nos muito bem, desafiei-o a gravarmos o disco e ficou logo muito interessado”, contou Selma Uamusse ao Observador. Na altura, a cantora vivia em Bruxelas e Pablo Lapidusas deslocou-se à cidade belga durante duas semanas. As gravações foram em Moçambique, com “músicos e instrumentos moçambicanos”, mas o resultado não foi o desejado: “Havia sempre algo na sonoridade que fazia lembrar mais jazz do que música moçambicana ou africana. Depois de tanto trabalho, foi uma decisão muito difícil, mas acabei por perceber que não era aquele o caminho que queria seguir”, apontou a cantora.

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A capa de “Mati”, o primeiro álbum de Selma Uamusse

Seguiu-se uma nova tentativa de polir e dar uma nova vida às gravações feitas em Moçambique, com David Neerman, “um produtor que ajudou a limpar um pouco todo aquele ambiente mais jazzístico e a encontrar uma sonoridade mais representativa de tudo aquilo que queria mostrar”.  Por “questões logísticas” — David Neerman “também era músico e deixou de estar disponível” –, o trabalho parou e o álbum voltou a ficar em banho maria. “Já estava a dar concertos e estava a ficar um bocado enervada porque achava que os concertos já estavam a criar uma sonoridade para o disco. Como comecei a tocar as canções, elas começaram a ganhar uma vida muito própria. Entretanto juntei a banda que tocava comigo, onde está o [percussionista] Nataniel Melo, que também era dos Terrakota e que conhecia muito bem os ritmos moçambicanos. E conheci o Jori Collignon”.

Se existia alguma maldição com os produtores deste álbum que teve avanços e recuos, Jori Collington quebrou-a: “Ao primeiro encontro percebi logo que era a pessoa certa. Tinha disponibilidade psicológica e emocional e conhecia muito bem o universo em que queria emergir, um universo africano mas também de eletrónica, da soul e do gospel”. Mati começou por fim a materializar-se, com apenas três gravações resgatadas (e transformadas) das primeiras sessões em Moçambique: “Lirhandzo”, tema de Selma Uamusse e Pablo Lapidusas, “Baila Maria”, uma versão da emblemática canção moçambicana originalmente composta por Chico António e “Ngono Utana Vuna”, do também moçambicano Eduardo Durão. “Mas esse casamento acho que foi possível também porque estava a tocar com músicos que conhecia há algum tempo”, acrescentou.

Bem mais que uma cantora de música tradicional

Mati é um disco que para muitos poderá ser uma surpresa. Quem estava habituado a ouvir Selma Uamusse nos coros dos Wraygunn, acompanhando Rodrigo Leão, cantando canções de Medeiros/Lucas ou fazendo espetáculos de homenagem a Nina Simone, talvez não esperasse ouvir a cantora entoar temas cantados em dialetos moçambicanos como o changana e o chope, embora também haja canções em inglês neste álbum de nove temas.

Os temas em língua inglesa são “Malian”, de Selma Uamusse e Milton Gulli com poema da escritora norte-americana, cantora e ativista dos direitos civis Maya Angelou, já falecida; “Funkier than a Mosquito’s Tweeter”, um original de Aline Bullock celebrizado por Nina Simone e por Ike e Tina Turner; e “Hope”, canção feita por Selma Uamusse em parceria com o membro da sua banda Augusto Macedo, que é um dos três temas com letra da cantora. Os restantes são “Mozambique”, escrito e cantado em changana e, no mesmo dialeto, “Mónica”, com letra de Selma Uamusse e da também cantora e compositora moçambicana Isabel Novella.

Em Mati houve, confirmou Selma Uamusse ao Observador, uma vontade de abraçar a herança musical de Moçambique, “que é muito rica mas que a cantora acha que “é muito pouco conhecida, ao contrário da música de Cabo Verde, Angola, Guiné, Mali ou Senegal”, por exemplo. “Tenho este desejo de suscitar curiosidade com aquilo que é feito em Moçambique”, país de que quer ser uma espécie de “embaixatriz” cultural em Portugal. No entanto, não se espere ouvir em Mati uma recriação dos géneros e registos tradicionais desse país.

Não estou preocupada em ser uma cantora de música tradicional moçambicana, estou concentrada em fazer a minha música, música de uma moçambicana que vive em Portugal e que gosta de sons tradicionais mas também de música eletrónica, jazz, gospel. Porque é isso que caracteriza os moçambicanos, uma pessoa vai a Moçambique e existem infinitas bandas de jazz, que nada têm a ver com música tradicional mas que são boas e desconhecidas, ao contrário de outros talentos malianos, senegaleses, camaroneses e por aí em diante”.

Claro que em Mati ouve-se a influência de alguns dos géneros da música negra americana que Selma Uamusse conhece bem e que cantou nos últimos anos. Em “Monica”, por exemplo, são notórios ecos de jazz, que também se ouvem um pouco mais discretamente em outras canções. Na versão de “Funkier than a Mosquito Tweeter”, há gospel e rhythm and blues que recordam a sua passagem pelos Wraygunn, sendo que aqui é seu o papel de protagonista. Já em “Malian” há spoken word com um toque de intervenção social.

O que é comum a quase todos os temas é estes ritmos e influências norte-americanas serem misturados com, quase absorvidos por, ritmos moçambicanos e africanos. Esses surgem reinventados com recurso a muitas ferramentas: sintetizadores, criação “digital” de batidas, guitarras e baixos, órgão, piano Rhodes, trompete, trombone, saxofone, bateria e instrumentos tradicionais do continente africano, muitos dos quais de percussão, como mbira (e o seu descendente mais ocidentalizado kalimba), o angolano kissange — ou kisanji –, o etiopiano gongoma, o afro-brasileiro berimbau e o “xilofone moçambicano” popular na província de Inhambane, timbila.

A cantora atuou no festival NOS em D’Bandada, no Porto, há dois anos

Selma Uamusse não quer, de todo, ser confundida com uma cantora tradicional, quer ser conhecida apenas como cantora e artista nascida em Moçambique e residente em Portugal: “Como muitas vezes se diz em relação aos portugueses que cantam em inglês e outras línguas, a música portuguesa, como a moçambicana, como a de outros sítios, é música feita pelas pessoas. Se sou moçambicana a minha música é moçambicana, ela não precisa de ser música tradicional, basta que seja feita por uma pessoa que é moçambicana. Ou luso-moçambicana”.

Muitas vezes apelidada de “espiritual”, a música de Selma Uamusse poderia ser igualmente descrita como séria, já que a cantora não a encara com leviandade: “Tento ter imenso cuidado com aquilo que escrevo e digo porque a música pode influenciar tanto a sociedade e pode mudar tanto o ambiente em que estamos que é uma missão sermos portadores de algo”, apontou. Algo que, para ela, deve ser “positivo, bom, que não transmite revolta, ódio, zanga ou ressentimento mas sim esperança, amor, paz e alegria”. Aqui, entramos no domínio da espiritualidade de Selma Uamusse, que abrange toda a sua vida e naturalmente também a música.

É um universo não declarado. Não vou para os concertos fazer pregações, mas é o meu modo de viver, que trago para os concertos tal como outros artistas trazem a sua verdade. A mim, a fé traz-me a minha verdade, revelada [na música] de uma maneira evidente e sincera.”

A cantora moçambicana não cresceu “nos bancos de Igreja”, não é crente desde pequena. “Não tive essa educação da minha família. A fé surgiu-me numa fase mais tardia, o que acho que é bom, traz mais dúvidas e mais questões mas também traz muito mais convicção e fé. É acreditar em algo não porque alguém te disse mas porque tens efetivamente revelação de algo”, explicou, lembrando ainda que na comunidade protestante, a que pertence, “a música é um elemento fundamental da comunhão. Tocamos com alegria, com guitarra, com baixo, com microfone. Há uma cultura musical muito grande, há um à vontade para cantar e falar com os outros que é meio transcendental e que levo muito para os concertos. Quem os viu sentiu algo um bocadinho diferente — as pessoas choram, riem, dançam… é uma montanha russa”, concluiu, rindo.

Se as canções bebem da fé, a questão aqui não é evangelização, mas expressão de um pensamento que se transpõe com naturalidade mas também conscientemente para a composição e para os palcos. “A música só se tornou a minha profissão por ser uma missão. Acho que no tempo em que vivemos, aliás em todos os tempos, a vida é tão curta e pequena que todos os utensílios são necessários para que possamos ser agentes ativos transformadores da sociedade”, referiu.

Se calhar é por causa disto que nunca fiz uma canção de amor, é porque encaro esta profissão como uma missão de trazer uma mensagem não só de amor mas de esperança e uma maneira de estar diferente, de vivenciarmos a nossa vida de uma forma menos preocupada com o nosso eu e com os nossos problemas mas mais preocupada em dar, porque quando damos, recebemos.”

O espaço a que Selma Uamusse tenta atrair os ouvintes é um espaço “de amor, de paz, de alegria e de contentamento independentemente das circunstâncias. É por isso que as minhas canções não são só de intervenção social e reivindicação, mas acima de tudo de nos reconhecermos num universo cheio de pessoas”. Um lugar, em suma, de verdade, que tem de exponenciar porque “se cantas uma mensagem que não tem a ver contigo mas com um elemento superior a ti, que é comum a outras pessoas, tem de existir muita verdade e sinceridade, se não, a mensagem não passa”.

A cantora tentou que essa visão sobre o que rodeia e essa intenção de transformar o meio envolvente estivesse presente em Mati, não apenas nas palavras, nem sempre acessíveis a quem não domina as linguagens escolhidas (inglês e os dois dialetos moçambicanos utilizados), mas na emoção com que as canta e na “verdade” da sonoridade que procurou, cruzando as suas origens com as suas experiências. Tudo isso poderá surgir, também, num disco futuro que Selma Uamusse está a fazer, em colaboração com o reputado músico e produtor musical brasileiro Guilherme Kastrup, que teve um papel decisivo, por exemplo, na conceção do álbum A Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares. Para já, a cantora não quis “gravar vozes finais” nem adiantar muito sobre esse disco. “Terá o seu tempo”, como explicou. Um tempo que se pretende luminoso, independentemente do que aconteça até o disco vindouro ver a luz do dia. Afinal, Mati termina com uma canção chamada “Hope”, que em português significa esperança. Não é por acaso.