O seu nome está nos despachos que deram luz verde à passagem dos contratos de venda da energia da EDP para o regime dos CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual), em fevereiro de 2005. Mas Manuel Lancastre não se lembra de ter negociado a famosa cláusula suspensiva que permitiu à EDP condicionar a transição para os CMEC à extensão do domínio hídrico das 27 barragens que estavam abrangidas por estes contratos. Na audição na comissão parlamentar de inquérito às rendas elétricas, realizada esta quinta-feira, o ex-secretário de Estado reconheceu:

“Não tinha consciência de que estava a assinar contratos com cláusulas suspensivas. E se tivesse tido, os presidentes das duas empresas teriam sido chamados, provavelmente pelo próprio ministro.”

Em resposta aos deputados, Manuel Lancastre afirmou ainda que, na sua opinião, a cláusula que permitiu estender o domínio hídrico das barragens da elétrica, sem concurso público, só pode ter sido introduzida pela EDP. 

O antigo secretário de Estado com a pasta da energia no Governo de Santana Lopes é mais um antigo responsável por decisões políticas que conduziram às chamadas rendas da eletricidade que afirmou desconhecer esta condição que veio a favorecer a elétrica. Mas Manuel Lancastre assumiu “plenamente a responsabilidade” pela legislação e até aceitou que lhe chamem o pai dos CMEC.

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Coube ao secretário de Estado do ministro da Economia, Álvaro Barreto, fechar o processo legislativo dos CMEC, homologando os contratos que têm sido associados às rendas excessivas da EDP e que estão a ser investigadas no Parlamento. O antigo governante reconheceu, em resposta ao deputado Jorge Paulo Oliveira do PSD, que não sabia, nem foi avisado pelo seu gabinete para as consequências da cláusula de suspensão. “Não assinou de cruz”, mas confiava na equipa que o acompanhava. “Foi apenas informado de que os ditos contratos estavam de acordo com o decreto dos CMEC. E quem fazia parte do seu gabinete à data, quis saber Hugo Costa do PS. Lancastre apontou Ricardo Ferreira, um assessor que “herdou” da equipa anterior e que foi pouco depois contratado pela EDP.

Ricardo Ferreira considera “natural” sair do Governo e ir para EDP

Apesar de reconhecer o desconhecimento, o ex-secretário de Estado assumiu a sua responsabilidade política no processo legal que conduziu à aprovação dos contratos CMEC. “Não vou fugir com o rabo à seringa”, disse numa intervenção que foi transmitida via Skype, a partir de Boston onde Manuel Lancastre vive e é professor universitário. Referindo que os contratos foram feitos entre a EDP e a REN, “não passaram pelo meu gabinete”, Lancastre reconheceu que se a cláusula está nos contratos de cessão é porque “alguém a quis pôr lá. Não foi por acaso”. E, na “minha opinião pessoal só pode ter sido introduzida pela EDP“, ainda que isso não fosse necessariamente do conhecimento do presidente ou de um administrador, acrescentou.

Manuel Lancastre foi ouvido por Skype na comissão de inquérito às rendas onde admitiu ser um dos pais dos CMEC

Este desconhecimento, que deixou o deputado do Bloco de Esquerda, Jorge Costa, “perplexo”, replicou, no essencial, as respostas dadas por outros antigos responsáveis na comissão de inquérito, incluindo o ex-presidente da EDP, João Talone, e o ex-administrador, Pedro Rezende, bem como os assessores técnicos que apoiaram o Governo neste processo legislativo. Até agora, apenas Vítor Batista, antigo administrador da REN, admitiu ter tido conhecimento das consequências dessa cláusula suspensiva que permitiu à EDP assegurar por mais 25 anos a exploração das barragens. Essa situação decorreu, segundo Vítor Batista, do quadro legal dos CMEC e a REN terá feito o alerta.

Apesar de reconhecer que à data, “não estava ciente” dessa cláusula a favor da elétrica, o antigo secretário de Estado desvalorizou as consequências legais dessa condição. Para o ex-governante, teria sido possível ao Governo seguinte — de Manuel Pinho — não aceitar a condição colocada a favor da EDP para transitar dos CAE (contratos de aquisição de energia) para os CMEC. Ou seja, defendeu, em resposta a Jorge Costa do Bloco.

“A alternativa é que os CAE teriam continuado a funcionar. Acha que o Governo é condicionado por contratos entre uma empresa do Estado e uma empresa participada pelo Estado? É uma assunção que minoriza o Governo seguinte”.

Quando foi questionado pela Comissão Europeia sobre a decisão de estender o prazo de concessão das barragens da EDP por 25 anos, o Governo português invocou a força legal da cláusula suspensiva, ou seja, se o Estado não atribuísse esse prolongamento, a EDP não aceitaria passar para os CMEC, um regime que a elétrica considerava de maior risco. Acontece que a passagem dos CAE aos CMEC era uma condição incontornável para o arranque do Mibel (mercado ibérico de eletricidade) que aconteceu em 2006, com o Governo seguinte ao que participou Lancastre.

E se tivesse sabido da tal cláusula suspensiva, o que teria feito? Pergunta feita pelo deputado do CDS, Hélder Amaral.

“Se soubesse dessa cláusula teria tentado falar com os presidentes da REN e EDP e perguntado porque estavam a tentar condicionar isto no fim do processo”. Mas não o fez porque desconhecia, voltou a afirmar.

“Se quiser chamar-me pai dos CMEC, tenho muito gosto”

Remetendo as opções e o texto do decreto-lei para o anterior Governo — de Durão Barroso com Carlos Tavares na Economia — o ex-secretário de Estado assumiu várias vezes, ao longo da audição, as suas responsabilidades no decreto-lei dos CMEC que qualificoude um decreto bom, ainda que não seja perfeito.

“Se tiver que assumir a paternidade dos CMEC, assumo-a plenamente. Recebi este diploma e dei-lhe seguimento. Gostava que houvesse vários pais, mas se quiser chamar-me pai, tenho muito gosto”.

Admitiu ainda que o conceito de prolongar o prazo de exploração das barragens pela EDP sem concurso público terá “implicitamente percorrido todos os governos“. E porquê? Manuel Lancastre remeteu para acadeia de valor da água em Portugal e para a sua grande dependência de rios que nascem em Espanha, país onde as elétricas têm um grande poder de mercado.

“Penso que nenhum Governo no seu perfeito juízo teria corrido o risco, e digo isto como cidadão, (…) de entregar a gestão integrada da cadeia de valor da água ao país vizinho. (….) Se lançasse um concurso público — para a exploração das barragens — teria de tentar evitar a concentração do mercado, mas não sei se teria sido possível impedir grandes grupos elétricos concorrer”.

Manuel Lancastre foi ainda questionado sobre os pareceres críticos feitos pelos reguladores da energia e da concorrência ao projeto do diploma dos CMEC e que alertavam para o impacto negativo para os consumidores, contrariando a tese da neutralidade do novo regime face aos CAE. A questão foi levantada por Bruno Dias, do PCP.

“Sabia que os reguladores diziam o contrário do que defendeu no Parlamento quando apresentou a lei dos CMEC?”

Manuel Lancastre, que não se lembrava de alguns detalhes destes pareceres, reconheceu as divergências face à posição dos reguladores, mas respondeu. “Está a partir do princípio do que os reguladores dizem é quase lei, que é inquestionável por ser dos reguladores”.

O ex-secretário de Estado da Energia foi também confrontado com a sua ida para a Prio, uma empresa de biocombustíveis, um ano depois de ter abandonado funções onde terá tomado decisões que favoreceram o setor dos biocombustíveis. O tema foi levantado pelo deputado do Bloco, Jorge Costa, que quis confirmar se esta “porta giratória” cumpriu as regras de incompatibilidades aplicadas a membros do Governo e se Manuel Lancastre teve uma mais-valia de 11 milhões de euros quando vendeu a sua participação na Prio à Martifer. Para o ex-secretário de Estado, esta questão foge ao tema do inquérito às rendas excessivas e acusou Jorge Costa de querer criar “uma distração”. Assegurou que cumpriu as obrigações de reporte ao Tribunal Constitucional e diz que está orgulhoso de ter participado na Prio que hoje é um dos principais operadores de retalho nos combustíveis.