O Presidente da República reitera nunca ter sido informado, por qualquer meio, sobre o alegado encobrimento na recuperação das armas furtadas de Tancos, e sublinhou que “é bom que fique claro” que “não é criminoso”. “Nem através do Governo, nem através de ninguém no parlamento, nem através das chefias militares, nem através de quaisquer entidades de investigação criminal, civil ou militar, nem através de elementos da minha equipa, da Casa Civil ou da Casa Militar, nem através de terceiros, não tive”, declarou Marcelo Rebelo de Sousa às televisões, à margem da Assembleia-geral das Nações Unidas, em Nova Iorque.

O chefe de Estado, que é comandante supremo das Forças Armadas, disse que soube que “a defesa de um dos implicados fez questão de afirmar expressamente que não envolvia o Presidente da República”.

 Espero que seja a última vez que falo sobre a matéria, até porque se aguarda a todo o momento a acusação, no caso de ela existir, e o que haja a investigar contra quem quer que seja, sem qualquer limitação, seja investigado”, afirmou.

O Presidente sublinhou que se trata dos “mesmos factos, os mesmos elementos”, de “há três ou quatro meses, que são reapresentados”. “Mas para que não restem dúvidas, por uma questão, não só de honra pessoal, mas porque estou aqui a defender a posição de Portugal, é bom que não esteja a defender a posição de Portugal na Assembleia-geral das Nações Unidas ao mesmo tempo que surge uma vaga dúvida sobre se o Presidente é criminoso“.

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“É bom que fique claro que o Presidente não é criminoso”, frisou.

Marcelo reagiu assim à notícia da TVI, divulgada pouco antes, de que o major da PJ Militar, Vasco Brazão, se referiu, numa escuta telefónica ao “papagaio-mor do reino”, e que, segundo ele, sabia de tudo. O Ministério Público terá interpretado que se referia a Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República. Esta escuta telefónica já tinha sido referida pelos jornais em início de agosto. Trata-se de uma conversa que o major mantém ao telefone com a irmã e em que lhe diz: “Vais ver que o papagaio-mor não vai falar sobre Tancos tão cedo. O papagaio-mor do reino não vai falar sobre Tancos tão cedo. Pois eles sabem, aliás o Sá Fernandes [o seu advogado] já lhes fez chegar, já fez chegar à Presidência que eu tenho um email que os compromete”, dizia.

Ricardo Sá Fernandes, no entanto, recusou que o seu cliente se estivesse a referir a Marcelo. Em declarações à Rádio Observador, disse:

É uma conversa em que o major Vasco Brazão está a tentar tranquilizar a irmã, que estava muito preocupada com ele. Referiu algumas expressões equívocas, menos felizes, mas já teve oportunidade de esclarecer no inquérito e agora esclareço em nome dele publicamente. Ele não teve em mente o Senhor Presidente da República. Tal como eu, teve a posição corajosa de dizer que o ministro da Defesa da altura tinha tido conhecimento de como tinha ocorrido o aparecimento das armas em Tancos. Também tem hoje completa segurança na afirmação de que, no conhecimento dele, o Presidente da República não soube o que é que se estava a passar. É completamente abusivo estar a imputar ao senhor major Vasco Brasão qualquer juízo relativo ao envolvimento do presidente da república no conhecimento dos factos que ocorreram em Tancos.”

Questionado sobre a quem se referia o major Vasco Brazão quando utilizou a expressão “papagaio-mor do reino”, Ricardo Sá Fernandes diz que essa questão “não tem interesse” e que o importante é, agora, esclarecer que Marcelo Rebelo de Sousa não tinha conhecimento do alegado encobrimento.

De acordo com o Expresso que cita fonte próxima do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa ficou furisoso com a tentativa de o envolverem neste caso e considera que foi “montada” uma tentativa de desviar as atenções para ele, em vésperas de ser deduzida a acusação. “Isto é uma maneira de fazer uma pré-acusação ao Presidente da República antes de haver uma acusação. Nas vésperas da acusação ser conhecida, tentar montar uma pré-acusação é um clássico, mas politicamente é uma grande estupidez política”, disse a mesma fonte.

O general João Cordeiro, ex-chefe da Casa Militar de Marcelo Rebelo de Sousa, chegou mesmo a ser investigado pelo Ministério Público, que depois de ouvir os vários arguidos suspeitos que estivesse a par da investigação paralela que a PJM fez, mas segundo a Sábado, não reuniu prova suficiente para o acusar. Fontes contactadas pela Sábado revelam que os procuradores Vítor Magalhães, Cláudia Porto e João Valente, do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, têm vários mails e registos de chamadas telefónicas entre o ex-diretor da PJM, Luís Vieira, e a Casa Militar da Presidência da República.

Mas as suspeitas de que o chefe da Casa Militar da Presidência, avança a revista, saltam de um mail enviado pelo diretor da PJM ao major Vasco Brazão, então investigado e porta-voz da PJM, em que lhe diz para pôr João Cordeiro a par de toda a situação. No entanto, não existe prova concreta de que, de facto, o responsável tenha sido informado das diligências que a PJM estava a fazer à margem da PJ civil.

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Ex-diretor da PJM também já tinha falado de Marcelo

Esta não é a primeira vez que Marcelo Rebelo de Sousa reage a declarações de arguidos do processo que tentam insinuar que ele sabia que havia uma investigação paralela ao furto das armas, por parte da PJM que não ficou contente com o facto de o caso ter ficada nas mãos da PJ civil porque era um crime ocorrido numa instalação militar.

Em abril, também o ex-diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM) disse, no parlamento, na comissão parlamentar de inquérito ao caso de Tancos, que pediu ajuda ao Presidente da República quando a investigação foi atribuída à Polícia Judiciária civil. O coronel Luís Vieira afirmou que Marcelo Rebelo de Sousa lhe garantiu que iria falar sobre a sua “preocupação” com a então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal.

O militar diz que tudo aconteceu a 4 de julho de 2017, dias depois do furto de material de guerra do paiol de Tancos, quando o então ministro da Defesa, Azeredo Lopes, convidou Marcelo a visitar as instalações.

“A reunião decorreu na presença de muitos oficiais, o senhor presidente perguntou-me algumas coisas sobre a investigação e eu disse que não estava em condições de responder. Mas que estava preocupado com a decisão da PGR [em atribuir a investigação à PJ]. Ele disse que ia falar com a PGR e ia dizer ao ministro da Defesa para falar com a ministra da Justiça”, declarou.

Quando o deputado do CDS-PP, António Carlos Monteiro, lhe perguntou se tinha consciência que aquele seu pedido violava toda a ordem constitucional e a própria separação de poderes, o ex-responsável pela PJM assumiu o risco. Mas diz que o fez por sentir que houve uma “desconsideração” pela PJM por parte de Joana Marques Vidal ao retirar-lhes a investigação.

Na altura, contactada pelo Observador, fonte da presidência confirmou que no final da visita a Tancos, “o então ministro da Defesa trouxe para junto de si o então diretor da PJM”. No entanto, a versão dos factos é outra: “O Presidente da República disse-lhe que haveria de o receber oportunamente, audiência que acabou por nunca se realizar”, refere, sem responder em concreto ao que o ex-diretor da PJM disse na comissão de inquérito.

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Um caso para a Justiça e para o Governo

O furto de armas de guerra nos paióis de Tancos foi divulgado em 29 de junho de 2017 e, quase três meses após a divulgação do furto das armas, a Polícia Judiciária Militar (PJM) revelou o aparecimento do material, na região da Chamusca, a 20 quilómetros de Tancos, em colaboração com elementos do núcleo de investigação criminal da GNR de Loulé. A forma como o material de guerra — granadas, incluindo antitanque, explosivos de plástico e uma grande quantidade de munições —. apareceu levantou desde logo as suspeitas da PJ civil, que começou a investigar esta operação de recuperação, que acabou na detenção do próprio diretor da PJM e do antigo porta-voz Vasco Brazão. Foram também detidos militares da GNR que compactuaram com a investigação ao desaparecimento de armas, que correu paralelamente à investigação oficial da PJ — a quem o Ministério Público atribuiu a  e três militares da GNR, num total de oito militares.

O caso acabou, assim, por ser investigado por duas polícias: a PJ civil, a quem o Ministério Público atribuiu a investigação, e a PJM, que terá mesmo encenado, depois, a recuperação das armas. O processo que agora corre no Ministério Público, e que deverá resultar numa acusação ainda esta semana — caso contrário as medidas de coação aplicadas aos arguidos extinguem-se, tem por isso como arguidos não só os supeitos do furto, mas também os militares da PJM e da GNR que terão encetado a tal investigação considerada ilegal.

Paralelamente, o caso também foi analisado politicamente numa comissão de inquérito. E foi pelas revelações que dali saíram que o então ministro da Defesa, Azeredo Lopes, acabou por ser constituído arguido numa fase posterior. Também o responsável pela Investigação Criminal foi constituído arguido depois de ter explicado perante os deputados como colaborou com a investigação da PJM, quando a investigação era afinal da PJ.

Um dos arguidos do processo é o ex-ministro da Defesa Nacional José Azeredo Lopes, que está proibido de contactar com os outros arguidos, com o seu ex-chefe de gabinete e com o antigo chefe de Estado Maior do Exército, general Rovisco Duarte. Segundo a Sábado, o ex-governante devará ser acusado dos crimes de abuso de poder, denegação de justiça e prevaricação.

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Mas foi o major Brazão quem não poupou ninguém na sua intervenção. O militar assumiu que a investigação paralela teria sido ordenada pelo diretor da PJM, indignado por ter perdido o caso que se passou numa instalação militar para a PJ civil. Brazão disse que, após a recuperação do material de guerra, o diretor da PJM, coronel Luís Vieira, numa diligência, “comunicou ao ministro da Defesa [Azeredo Lopes], na presença do chefe de gabinete, que a operação tinha ocorrido através de um informador”, explicando como tudo tinha acontecido. “O senhor ministro não deu instrução para fazermos de outra maneira”, garantiu.

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Azeredo Lopes admitiu que logo no dia em que a PJM anunciou em comunicado a operação de recuperação das armas, que recebeu uma chamada da então Procuradora-Geral, Joana Marques Vidal, a afirmar que poderia avançar com um processo disciplinar contra os responsáveis pela PJM porque  tinham feito uma investigação ao arrepio do que o Ministério Público tinha determinado. Pouco depois, o diretor da PJM foi falar com o seu chefe de gabinete, que lhe terá ligado, a informar do que tinha sido feito.

Na comissão de inquérito procurou-se sempre saber qual o nível de conhecimento do caso do ministro da Defesa e do próprio primeiro-ministro, António Costa, que respondeu por escrito aos deputados.

Tancos chega à campanha eleitoral: envolver Marcelo é “leviano” e o tempo, que agora “é da Justiça”

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Incontornavelmente, o tema de Tancos chegou à campanha política, com os candidatos a pedirem o apuramento das responsabilidades, ou a quererem afastar o tema do período eleitoral.

O secretário-geral do PS, António Costa, recusou-se a fazer comentários, alegando que esse processo pertence à esfera da justiça. “Isso é da justiça”, limitou-se a responder António Costa.

Instada a comentar os desenvolvimentos no caso, a coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins, diz que “este é um caso que não é de agora”. “Portanto julgo que não deve ser um caso de eleições, até porque já decorre há bastante tempo”, considerou a líder do BE.

“A acusação ainda não se conhece e não vou fazer qualquer tipo de especulação sobre essa matéria. Vou repetir o que o Bloco de Esquerda disse sempre: a justiça deve fazer o seu caminho e deve apurar todas as responsabilidade e todas as consequências. Portugal é uma democracia e é assim que deve funcionar”, acrescentou ainda, evitando falar mais sobre o tema.

Já a presidente do CDS, Assunção Cristas, considera que “é tempo de deixar funcionar a justiça”. “Entendemos que o Governo esteve muito mal e não é por acaso que o CDS tem sido extraordinariamente crítico deste Governo por várias razões mas também por esta. Pela degradação muito grande das áreas de soberania em que o Estado de facto ficou numa situação que não consideramos sequer pensável”.

Cristas defende que “o tempo da política foi exercido no Parlamento no tempo próprio e pelo CDS também, com duas moções de censura ao Governo”. Por isso, “agora é o tempo da justiça e o tempo da justiça tem de funcionar. Se houver acusações a serem deduzidas e julgamentos a terem lugar pois que eles aconteçam”.

Envolver Marcelo Rebelo de Sousa no caso de Tancos é “leviano”, afirma, por sua vez, o líder dos sociais-democratas, Rui Rio. “Envolvimento do Presidente da República não vejo nenhum”, começou por dizer, acrescentando que é preciso “muito cuidado” ao envolver o nome de qualquer Presidente da República em processos judiciais.

E não poupou críticas a António Costa. Questionado sobre o alerta que lançou, na terça-feira, de que o Governo estaria a preparar uma “nova encenação”, sem especificar a que se referia, respondeu que o PS tem um “tique político”. “É notório que há um tique político no PS de, quando as coisas não estão a correr da melhor da maneira, ele [António Costa] faz um número. Será normal se nos próximos dias vier a fazer uma coisa destas”, insistiu.

Jerónimo de Sousa também afasta o envolvimento do Chefe de Estado. Para o secretário-geral do PCP “por enquanto, vale a palavra do Presidente”, pelo menos até que haja “apuramento de todos os factos”. “Não tenho nenhuma razão para suspeitar”, disse, pedindo agora um “apuramento dos factos”. “Foi o próprio Marcelo Rebelo de Sousa que, recentemente, afirmava que era preciso fazer as averiguações e o apuramento dos factos todos. Faça-se esse apuramento dos factos e, com certeza, encontraremos a resposta, mas, por enquanto, vale a palavra do Presidente e vale essa necessidade de apuramento dos factos”, disse, embora não se queira “precipitar a fazer juízos de valor”.

André Silva, do PAN, não quis comentar o caso, referindo apenas que “Tancos não deve entrar na campanha”. “Este caso sempre esteve envolvido numa enorme opacidade. Estamos a falar mais uma vez de uma informação que é uma especulação. E portanto não tenho nada a comentar sobre algo que é especulativo e não queria estar a aumentar o ruído em torno de um caso que precisa de muitos mais esclarecimentos”.

[Artigo atualizado às 13h00 com as declarações do advogado Ricardo Sá Fernandes; às 13h51 com as declarações dos líderes partidários; e às 19h08 com as declarações de fonte próxima do gabinete do Presidente da República ao Expresso]