A aplicação de uma taxa progressiva do IVA da eletricidade consoante o escalão de consumo é uma solução que “não tem enquadramento legal”. A expressão foi usada pelo Ministério das Finanças nas discussão das propostas para o Orçamento do Estado que permitiriam baixar o preço final da energia, de acordo com um documento enviado ao parlamento…. há mais de um ano e a que o Observador teve acesso logo na altura.

Estava em causa o Orçamento de 2018, ainda negociado com os parceiros da geringonça, e a proposta de fazer variar o IVA em função do consumo tinha sido apresentada pelo Bloco de Esquerda. Mas foi recusada pelo Executivo que nem sequer terá tentado validar esta possibilidade junto do Comité do IVA da Comissão Europeia, segundo se queixou na altura a coordenadora do partido Catarina Martins.

Numa entrevista já dada depois da proposta do Orçamento do Estado, o ministro das Finanças justificava assim a nega.

“A outra (razão), que é absolutamente crucial, foi o custo associado a uma descida generalizada da taxa do IVA, que era absolutamente incomportável do ponto de vista orçamental. E não sendo possível fazer algo dentro daquelas taxas porque o regulamento comunitário torna muito difícil mexer de forma seletiva nas taxas do IVA dentro de um certo mercado, essa solução tornou-se inviável”.

O Governo mudou entretanto, ainda que os ministros em causa sejam os mesmos, e a posição sobre o tema também se alterou. A introdução de uma taxa de IVA diferenciada por escalões de consumo foi agora defendida por António Costa no debate quinzenal.

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Depois de semanas a alertar para os efeitos orçamentais de uma descida do IVA sobre a energia para a taxa reduzida, e perante o cenário muito provável de uma coligação negativa entre a esquerda e o PSD para viabilizar uma medida que está no programa destes partidos, o primeiro-ministro revelou que o Governo queria afinal correr no pelotão da frente desta discussão. Isto apesar de dar prioridade a outras formas de reduzir o preço da energia.

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A proposta já seguiu para a Comissão Europeia e até teve direito a uma carta de António Costa à presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, a apelar a uma decisão política em Bruxelas porque em Lisboa há consciência de que aquilo que Portugal quer fazer está desalinhado com o princípio da neutralidade do IVA. Mas Costa pede que sejam ponderadas as metas europeias de combate às alterações climáticas na avaliação da proposta nacional, na medida em que esta poderia incentivar consumos menores. Nem uma referência à perda de receita — da ordem dos 700 milhões de euros — que traria uma descida generalizada para a taxa reduzida como pretende a oposição.

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Também há um pedido oficial do ministro das Finanças ao Comité do IVA. Contactada pelo Observador, fonte oficial das Finanças não esclareceu, para já, as razões que levaram a esta viragem sobre o IVA reduzido na energia.

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Jorge Costa, o deputado do Bloco que tem entre mãos os temas da energia, confirma ao Observador que o Governo recusou no ano passado estudar a solução proposta por partido e que agora veio anunciar. A ideia passava por estabelecer um consumo mínimo que fosse considerado um patamar essencial, ao qual se aplicaria a taxa reduzida de 6%. A partir desse patamar, a eletricidade consumida passaria para a taxa normal de 23%.

“Sinalizamos esta solução e defendemos que o Governo deveria apresentar a proposta junto do Comité do IVA para estar a sua viabilidade”.

A proposta do Bloco ficava a meio caminho da descida para a taxa reduzida, que é ainda hoje a solução defendida pelo partido, e procurava responder à preocupação com a perda de receita fiscal. Mas a proposta acabou por não ser trabalhada, nem levada ao Comité do IVA, porque o Governo considerou à partida que seria ilegal, acrescenta. A coordenadora do partido, Catarina Martins, até o assinalou publicamente.

“É difícil de explicar que, face à possibilidade de fazer essa baixa de IVA, e tendo nós encontrado uma modelação que é comportável do ponto de vista orçamental para os números que o Governo está a estudar e para aqueles que nós achamos que são necessários, que eventualmente – por um excesso de campanha europeia de Mário Centeno – não se fosse ao Comité do IVA resolver o problema de o IVA em Portugal estar na taxa máxima para um bem essencial como a energia”, afirmou Catarina Martins em outubro de 2018, reagindo a uma entrevista dada por António Costa na qual afastava o cenário da descida deste imposto na eletricidade.

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No documento consultado pelo Observador, o Ministério das Finanças acrescentava outros problemas, para além do legal. Admitia que poderia ser viável avançar com uma solução de diferenciação do IVA em função de escalões de consumo, mas através de um mecanismo de devolução do valor suportado pelo consumidor até determinado nível de consumo. Avisava contudo que este sistema teria “grande complexidade do ponto de vista da sua implementação” e que a sua legalidade também poderia vir ser questionada, “designadamente no âmbito do Comité do IVA”.

O que acabou por avançar, e que está nos mesmos documentos de trabalho, foi a redução da taxa do IVA para 6% apenas para a parte fixa da fatura da eletricidade, ou seja apenas para as potências contratadas mais baixas, o que acabou por ter um efeito residual no preço final e só entrou em vigor após luz verde de Bruxelas em abril.

O Bloco de Esquerda manifesta abertura para viabilizar esta modalidade do IVA variar em função do consumo, mas com duas condições.

  1. O patamar mínimo de consumo essencial que beneficiaria da taxa reduzida deve incluir todos os consumidores de eletricidade, que até esse nível pagariam os 6%, e sua fixação deve permitir um impacto relevante na descida da fatura final, ao contrário do que aconteceu este ano. (Quanto mais relevante for o impacto, maior será a perda na cobrança fiscal).
  2. A lei do Orçamento do Estado deve dar garantias que, caso a posição de Bruxelas venha a ser desfavorável, se avança para a única forma de baixar o imposto sobre a energia, que é a de aplicar o IVA a 6% em toda a fatura. “Isso deve ficar salvaguardado no Orçamento do Estado”, defende Jorge Costa para que uma resposta negativa da Comissão “não sirva de pretexto para não se fazer nada.” Uma queda generalizada para a taxa reduzida também precisa da autorização de Bruxelas, mas para esta situação há vários precedentes.

Mas, afinal, de que escalões podemos estar a falar?

António Costa pouco revelou da proposta concreta que Mário Centeno terá já feito chegar ao Comité do IVA, para além da diferenciação da taxa em função de escalões de consumo. A ideia remete para o modelo progressivo aplicado no IRS, em que há uma primeira fatia do rendimento de todos os contribuintes que cai no primeiro escalão, pagando a taxa mais baixa. Só a partir desse patamar é que a taxa do imposto vai subindo à medida que o rendimento vai crescendo.

No caso da eletricidade — não é ainda claro se a medida abrange o gás natural — e de acordo com a ideia trabalhada pelo Bloco de Esquerda no ano passado, estaria em causa a criação de apenas dois escalões. O primeiro cobriria uma quantidade de consumo que correspondesse a um mínimo essencial para garantir as necessidades mais básicas — não é claro que indicadores seriam usados para tal ao qual se aplicaria a taxa dos 6%. A partir deste mínimo, todo o consumo pagaria os 23% atualmente em vigor.

Este escalão mínimo seria igual para todos os mais de seis milhões de clientes de eletricidade, independentemente da dimensão do agregado familiar. Isto porque, explica Jorge Costa, ao contrário do que sucede na água, o consumo de energia elétrica não cresce na mesma proporção que o número de pessoas a utilizá-la. Grande parte do gasto pode servir mais do que uma pessoa ao mesmo tempo, como um aquecedor, um frigorífico ou outros equipamentos.

Há restrições europeias, mas também há um precedente que até é português

Porque é que Portugal não pode decidir sozinho o IVA que cobra? Este é um imposto criado a nível europeu e a diretiva do IVA define a lista de bens e serviços em relação aos quais os países têm liberdade para decidir as taxas. Mas a lista exclui a eletricidade e o gás natural, refere ao Observador o fiscalista da Deloitte Afonso Arnaldo. Para aplicar uma taxa reduzida a estes bens, é preciso pedir autorização ao Comité do IVA, um órgão técnico onde estão representados os Estados-membros, mas também a Comissão Europeia.

Ainda que uma solução deste tipo não exista em outro país europeu, pelo menos na energia, também não há uma regra que impeça de se fazer o pedido para aplicar uma taxa diferenciada ao mesmo produto, neste caso, a eletricidade, que é considerada uma transmissão de bem”. O que distingue esta modalidade do que Portugal conseguiu este ano, cobrar a taxa dos 6% a apenas uma parte da fatura, é que esta componente, que corresponde à potência contratada, pode ser considerada um serviço diferenciado face à energia que consumimos, defende Afonso Arnaldo. Isto já era feito em França. Em causa está um elemento destacável do resto do fornecimento que pode ser separado para efeitos de faturação e passível de aplicação de taxas distintas. Aliás, o Tribunal de Justiça da UE já se pronunciou favoravelmente a este tipo de opção.

Já sobre a taxa distinta em função do volume de energia consumido, que Costa agora lançou, há mais dúvidas. Isto porque estamos a falar de “algo não testado e ainda mais artificial” e que nunca foi testado junto das instâncias europeias. O Tribunal de Justiça apenas de pronunciou em casos em que os Estados-membros decidiram aplicar taxas distintas a elementos distintos de uma mesma operação, mas nunca em situações de aplicação de taxas distintas em função do volume de produto ou serviço consumido.

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Seria como pagar 6% de IVA na primeira maçã que se compra e pagar uma taxa mais alta na segunda, exemplifica o fiscalista. Apesar do caráter não alinhado desta modalidade, que o primeiro-ministro reconhece na carta a Ursula von der Leyen, há um precedente que pode ser invocado e que até é português.

Afonso Arnaldo remete para o setor da restauração, onde ao mesmo serviço são aplicadas duas taxas; a intermédia de 13% à generalidade do que é serviço comida e a de 23% a algumas bebidas. Pode ser comparável, admite, mas esta fórmula nunca foi testada junto do Comité do IVA, ou do Tribunal de Justiça porque a restauração é um setor em que os Estados-membros têm liberdade para escolherem a taxa que querem aplicar. Ou seja, não houve discussão prévia.

No caso da energia Portugal fez a proposta, e a Comissão Europeia terá de avaliar os impactos ao nível da concorrência. Caso não manifeste oposição no prazo de três meses, a medida poderá avançar.

António Costa agora dirigiu-se diretamente à presidente da Comissão para tentar influenciar a sua posição no Comité do IVA, que será a mais importante para Portugal conseguir a autorização. Afonso Arnaldo admite que será este o objetivo da carta enviada pelo primeiro-ministro e não o de mudar a diretiva do IVA, porque isso exigiria o acordo de todos os Estados-membros e nem daqui a um ano seria possível de concretizar. “Não acredito que o intuito seja alterar a diretiva do IVA”, conclui.