O realizador de cinquenta anos tem tido um último ano em grande. Os quatro Óscares que arrecadou nesta noite (Melhor Argumento Original, Melhor Filme Internacional, Melhor Realizador e Melhor Filme) são o culminar de uma campanha fenomenal com “Parasitas”, um filme que reuniu o consenso da crítica, do público e, claro, dos prémios. E tudo começou com uma Palma de Ouro, de voto unânime, em Cannes, em maio de 2019. O resto é história, dizem. O filme foi-se estreando pelo mundo e conquistando o seu lugar. Não vale a pena falar muito sobre “Parasitas” com risco de estragar a experiência a quem não viu. É um daqueles casos que, quanto menos se souber, melhor. Pode-se colocar as coisas assim: o filme não é o que parece.

É um efeito comum no cinema de Bong Joon-ho, é a sua marca. Mas o sul-coreano não faz disso uma artimanha para fazer vencer os seus argumentos/filmes, é uma forma de comunicar para o mundo no tempo em que vivemos. Uma arte que Bong Joon-ho tem desenvolvido muito bem: a de esconder o que os seus filmes dizem sobre ele e sobre o mundo. Isso já estava no seu primeiro filme, há vinte anos, “Barking Dogs Never Bite”. Mas foi seis anos depois, com “The Host — A Criatura” (2006) que a sua carreira internacional descolou. E, por descolar, não se está a menosprezar o brilhante “Memories of Murder” (2003).

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Só que “The Host” é realmente especial. Numa altura em que se vivia saturado de filmes com monstros e de cataclismos, em que o cinema-catástrofe caía no seu próprio apocalipse, Bong Joon-ho consolida ação, terror e filme de família de uma forma impressionante. Contudo, isso só é o que é. Não é o além que mostrou que “The Host” tinha outro olhar. Isso estava nas entrelinhas do filme e só poderia vir de alguém que não vive no dito ocidente: “The Host” é uma reflexão magnífica sobre como se olha para o outro. E, por outro, entenda-se aquele que está distante, aquilo que acontece nos outros países. Num momento em que se volta a falar de pandemias, o filme-não-catástrofe de Joon-ho tem uma coisa ou outra a dizer para a forma como olhamos para o corona vírus.

[o discurso de Bong Joon-ho:]

Seguiu-se “Mãe” (2009), mais um filme na linha de como se olha o outro, mas de um modo mais óbvio e ajustado a uma realidade social concreta. Bong Joon-ho relembrou que ainda sabia fazer drama puro. Quatro anos depois, faz o surpreendente “Snowpiercer” (2013), um filme de ficção científica, o seu primeiro em inglês, inspirado na banda-desenhada “Le Transperceneige”, de Jacques Lob, Benjamin Legrand and Jean-Marc Rochette. Passa-se todo num comboio e a combinação ação/ficção científica esconde as causas mais humanas que existem permanentemente nos seus filmes, neste caso as alterações climáticas e, também, a incapacidade de se agir em grupo perante o desconhecido. Torna-se, surpreendentemente, num filme muito político, graças à metáfora que se começa a gerar a meio de “Snowpiercer” em volta de uma revolução dentro de um comboio em constante movimento.

Glória a Bong Joon Ho, glória aos “Parasitas”

As preocupações ambientes de “Snowpiecer” tornaram-se ainda mais evidentes com “Okja” (2017), o seu primeiro filme nomeado para uma Palma de Ouro, e uma das grandes produções da Netflix em 2017. Entra outra vez no território da ficção científica, onde a criação de um “super-porco” é uma falsa solução para os problemas ambientais do mundo. Filme ambientalista, sim, futurista, também, mas é sobretudo consciente da incapacidade de agir no presente perante o desconhecido. É como se voltasse a “The Host”, mas com uma história radicalmente diferente, misturando “Cowspiracy” com “O Meu Vizinho Totoro”.

O que a grande noite de Hollywood fez por “Parasitas” e pelo seu realizador foi permitir a aceitação e promover o trabalho de alguém que tem resistido às tendências da indústria e criado filmes que levam o espectador para outros presentes. Entre catástrofes, comboios que ainda não vimos e criaturas que servem o imaginário da alimentação do futuro – e que até já está bem presente na popularização da carne-que-não-é-carne -, “Parasitas” já existia no seu cinema. Só que o realizador nunca o tinha feito tão bem e nunca tinha tido tanta aceitação.