Não foi propriamente uma surpresa, apesar de ser uma notícia desagradável. Jorge Buescu, licenciado em Física e doutorado em Matemática, já tinha comentado com os familiares mais próximos que a primeira morte de um doente de Covid-19 em Portugal deveria acontecer domingo ou segunda-feira. Não por ter um modelo matemático que assim o indicasse, mas por aproximação estatística a outros países. Assim foi. A primeira vítima mortal foi anunciada esta segunda-feira pela ministra da Saúde — um homem de 80 anos, internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, há vários dias. No imediato, acredita que a curva de óbitos em Portugal vai acompanhar a curva espanhola. O problema será quando o Serviço Nacional de Saúde atingir a rutura.

Esta segunda-feira, Portugal foi o país europeu, entre os que têm mais de 200 infetados, que registou a maior subida de casos positivos em 24 horas, uma subida de 35% — um aumento, ainda assim, ligeiramente abaixo do registado em dias anteriores em termos percentuais.

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“Não há aqui nada de particularmente científico. Não tenho propriamente um modelo matemático que me permitisse dizer quando íamos assistir à primeira morte. É uma mera correlação estatística, depois de comparar a nossa curva com a de Itália, Espanha, Alemanha”, explica. “Vi nos respetivos dados quantos infetados tinham esses países no momento da primeira morte e percebi que íamos passar por lá durante este fim de semana.”

Em Portugal, passaram-se 14 dias entre o primeiro caso positivo de infeção pelo novo coronavírus. A primeira morte aconteceu na data em que se registava um total de 331 infetados (3 já curados). No domingo eram 245, no sábado 169.

Em Espanha, passaram-se 8 dias entre a primeira infeção e a primeira morte (que aconteceu quando havia 162 doente de Covid-19). Em Itália, o segundo país mais afetado pela pandemia, 21 dias separam o primeiro caso conhecido da primeira morte anunciada. Nesse dia, 21 pessoas estavam infetadas e nada fazia prever que a evolução tomasse as proporções atuais. Também em França são 21 dias que separam o primeiro caso conhecido da primeira morte (primeiro óbito na Europa). Nessa altura, os franceses contavam apenas 12 casos de contágio.

Reino Unido? 34 dias. A primeira morte acontece quando os infetados chegam aos 116.

A Alemanha foge a qualquer padrão. A primeira morte acontece quando já há 1.224 infetados, 42 dias depois de detetado o primeiro caso positivo.

O antigo professor do Instituto Superior Técnico, atual da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, anda há 14 dias a fazer previsões sobre a evolução do número de infetados. As contas que tem feito colocam os números de infetados em Portugal entre o 16.300 e os 48 mil no final do março, mas, como o próprio assume num artigo publicado no Observador, as suas estimativas têm-se revelado conservadoras e errado por defeito.

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“Uma coisa é prever o número de infetados, que tem a ver com a forma de propagação. Outra coisa é falar de mortes que tem a ver com muitas outras variáveis e que, sobretudo, tem muito a ver com os meios médicos que cada país tem à sua disposição”, lembra o antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. “Somos o país com menos meios à sua disposição. A Alemanha tem nove vezes mais camas per capita do que nós, e três vezes mais do que Itália.”

O exemplo de Itália serve para ilustrar esse detalhe. Antes da rutura do serviço de saúde, a taxa de mortalidade estava nos 2%, depois de tudo falhar, subiu para os 6% e os médicos italianos são obrigados a escolher quem podem salvar já que os meios não são suficientes para todos.

Em Itália, os hospitais estão à beira do colapso — e os médicos têm de escolher quem podem tratar

“É olhar para os outros países europeus para ver o que vai acontecer. Não podemos esperar melhor. Podemos estar com eufemismos, mas, mais cedo ou mais tarde, o país vai chegar ao ponto de rutura — que é quando temos mais doentes do que camas —, como aconteceu com Itália. Só a Alemanha é que fica de fora, é um caso à parte porque tem muitos mais meios e, apesar do número de casos, está a conseguir conter os casos críticos”, sublinha Jorge Buescu. “Vamos seguir Espanha, mas provavelmente vamos chegar mais cedo ao ponto de ruptura.”

E isso significa mais mortes, como Graça Freitas, diretora geral da Saúde, assumiu esta segunda-feira na conferência de imprensa em que a ministra da Saúde anunciou a primeira vítima mortal entre os doentes de Covid-19. “Vamos ver como vai ser o desfecho, todos sabemos que a taxa de mortalidade desta doença é superior a 2% em todo o mundo. Portanto, teremos nos próximos dias mais pessoas a falecer. Faz parte da história da doença.”

Para segunda-feira, Jorge Buescu ainda não tinha feito a comparação das curvas com o número de infetados por SARS-CoV-19, mas no domingo a evolução portuguesa era igual à de Espanha, estava bastante abaixo da de França, e muito abaixo da da Alemanha e de Itália.

Portugal foi o país europeu com mais de 200 casos que registou a maior subida no número de novos infetados em 24 horas, de acordo com os dados mais recentes do Worldmeter, um site que atualiza em permanência as estatísticas nacionais sobre a evolução do novo coronavírus.

Entre os 18 países europeus que já identificaram mais de 200 doentes infetados, Portugal registou em 24 horas (até às 00h00 de segunda-feira) uma subida de 35%, o que corresponde a mais 86 infetados, subindo o total para 331. É o maior aumento diário em termos percentuais verificado nestes 18 países.

Na Alemanha e Holanda, verificou-se um acréscimo de 25% no número de infetados, enquanto na França houve mais 22% de casos. Estónia, Bélgica e Espanha viram os números subir na casa dos 18%. Em Itália, os novos casos registados cresceram 13%. Apesar de terem mais infetados do que Portugal, países como a Suécia, a Suíça, a Noruega e a Dinamarca, nas últimas 24 horas com registo, viram os número de infetados crescer abaixo de 10%. Por outro lado, e nestes 18 países, onde se inclui a Suíça (que é um dos que apresenta mais casos), há quatro que ainda não reportaram mortos.

A matemática do coronavírus. Afinal é ou não mais contagioso e mais mortal que a gripe sazonal? O que dizem os números e os especialistas

Estas diferenças traduzem o grau de desenvolvimento do surto em cada país. Portugal não esteve entre os primeiros a registar casos positivos, mas as autoridades de saúde já tinham avisado que o número iria subir bastante nas próximas semanas.  Mas haverá outros fatores. É preciso avaliar se nos próximos dias se Portugal mantém um registo superior de novas infeções diárias em relação a outros países, sobretudo aqueles que se encontram num grau comparável de evolução do surto.

E ainda há solução com um cenário assim? “A única coisa possível a fazer é um orçamento de emergência para a Saúde, comprar ventiladores à China, e pôr aviões militares a ir buscá-los. Não estou a brincar. A nossa janela de oportunidade é curtíssima”, conclui Jorge Buescu.