“Lavem as mãos, tentem não tocar com a mão na cara”. No plenário, António Costa debitava, mais uma vez, as regras básicas de combate ao novo coronavírus, enquanto ali mesmo ao seu lado o ministro Pedro Siza Vieira apoiava a cara toda na sua mão esquerda, pensativo. Mão à cabeça, na testa, depois no queixo, coçar a orelha e apoiar a face de novo na palma da mão. Contas à vida curta do segundo Governo socialista que são tantas nesta altura que fazem até esquecer o risco dos mais elementares gestos, mesmo quando no ar paira um leve odor a desinfetante com álcool a despertar constantemente para os novos tempos.

Não que o debate estivesse a ser especialmente duro — o PSD suspendeu a oposição e à esquerda do PS manifestaram-se sobretudo preocupações com o aproveitamento das grandes empresas para avançarem com despedimentos nesta altura. Mas o castelo de cartas que o Executivo vinha a construir desmoronou-se da noite para o dia, tanto que já nem teve grande impacto o anúncio que Costa deixou escapar, durante o debate, que 2019 fechou mesmo com excedente (o valor certo sabe-se esta quarta-feira). Até porque o deste ano, já era.

Às 15 horas, hora certa para o quinzenal, e nem um sopro nos corredores. Verdade que no plenário estariam muito mais deputados do que o indicado pelo presidente da Assembleia da República. Ferro Rodrigues decidiu que funcionaria nos mínimos, com apenas 46 parlamentares (um quinto do total), mas quando o debate arrancou estavam na sala cerca de 70, contados pelo Observador. Uma redução que ficou acima das regras, mas que foi suficiente para que lá fora nem se percebesse que era dia de receber o primeiro-ministro no Parlamento.

Mal se entra no edifício da Assembleia da República, um pormenor impossível de escapar. O ar cheira a desinfetante das mãos, com os dispensadores colocados em alguns pontos dos corredores e sempre utilizados por quem passa. À entrada do plenário também há, tanto que sempre que entra alguém vem a esfregar as mãos uma na outra. Mas desta vez ninguém trouxe máscaras ou luvas (como fez o deputado João Almeida na última reunião — nesta não esteve).

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A outra prática diferente do antes-Covid-19 é a das portas. Ninguém as segura. É correr e esticar o pé para ainda apanhar uma fresta aberta e não ter de segurar naquele ponto que as novas regras mais diabolizam: a maçaneta. Dar um pequeno toque com o pé e passar, mãos ao ar.

Nas poucas conversas que se foram juntando fora do plenário, sempre uma distância de segurança respeitada, Tanto que a dada altura a líder parlamentar socialista, Ana Catarina Mendes, foi chamada por um deputado no corredor e deu pequenos saltos para o lado para cumprir as regras. Não há cumprimentos, nem com os cotovelos e nem mesmo o mais famoso conforto político da palmada nas costas. Acenos à distância neste novo Parlamento higiénico, da crise pandémica.

E o ambiente asséptico estendia-se ao interior do plenário, com uma cadeira deixada vazia entre os deputados que apareceram para a sessão. Quando André Ventura chegou, a bancada onde CDS, Chega e Iniciativa Liberal partilham espaço rearranjou-se para que todos estivessem com o distanciamento devido. Não houve discursos escritos distribuídos pelos assessores das bancadas parlamentares aos jornalistas. Mas houve, ainda assim, guerrilha, precisamente por causa do número de deputados presentes. Mas nem aí foi como é costume: a contenda fez-se, estranhamente, dentro de uma mesma bancada, a do PSD (mas já lá iremos).

À esquerda receio de aproveitamento para despedir

Começou pelo Bloco de Esquerda que (tal como havia de fazer o PCP logo de seguida) apontou aos riscos desta crise ser aproveitada pelos grandes empresários para dispensar recursos humanos. Na TAP e na Fnac, exemplificou Catarina Martins, já há casos. E António Costa, na resposta, não escondeu que isso vai acabar por acontecer. “O impacto desta crise na economia vai ser muito mais profundo e duradouro”, avisou aconselhando empresários a “aguentar nos próximos três meses” — é o novo mantra do Governo –, até o pico passar e a situação acalmar em Portugal. Mas sem deixar de assumir que há que “não criar ilusão de que é possível viver esta crise sem que o emprego sofra um impacto”. “Vai ter dor”, tinha dito na noite anterior na entrevista à TVI.

Neste contexto, Costa disse que esta semana será aprovado depois do quadro legislativo para que as moratórias [aos créditos das empresas] estejam asseguradas”, numa tentativa de retirar “pressão excessiva” e dar “capacidade de respiração dos particulares e empresas”.

Já nem o PS aplaudiu quando no meio de uma resposta à bloquista, o primeiro-ministro revelou que “dentro de dias saberemos o saldo orçamental de 2019, com grande probabilidade teremos tido um saldo orçamental positivo”. O excedente afinal chegou um ano antes. O Governo falhou na previsão. O deste ano não chegará, isso é ponto assente.

Jerónimo de Sousa juntar-se-ia à questão do desemprego, mas a resposta estava assumida. Por isso o comunista acabou por trazer ao debate outra preocupação: a especulação de preços praticados pelos “grupos económicos”. Na resposta, Costa garantiu que há 16 brigadas da ASAE em ação e que há já “quatro processos-crime” instaurados neste momento. No final da intervenção, o líder comunista saiu do hemiciclo de imediato. Também já tinha esperado pelo momento da sua intervenção para entrar. Só lá esteve dentro o tempo estritamente necessário.

Ambas as bancadas questionaram o primeiro-ministro sobre as férias da Páscoa. Vão manter-se os apoios às famílias? As creches vão estar abertas para os país que têm de ir trabalhar? O período de exceção estende-se para esse dias? Sim, sim e, muito provavelmente, sim. Eis as respostas, por ordem.

António Costa avisou logo que “provavelmente a 9 de abril a discussão que estaremos a ter é prolongar esta situação e esta medida muito para além das férias da Páscoa”. Portanto, sim, o período de emergência irá prolongar-se. As creches vão funcionar nesse período de férias para continuarem a ajudar os pais que precisam desse apoio, esclareceu ainda. E vão também manter-se os apoios financeiros às famílias (subsídios para quem está em casa com os filhos), com o líder do Governo a sublinhar, no entanto, o impacto na despesa pública deste prolongamento: “Custa 296 milhões de euros por mês”.

O abandono de Rio e um email com Caps Lock enviado à hora de jantar

Rui Rio levantou-se com o dedo no ar para pedir a palavra e deu um raspanete aos deputados do PSD: “Concordo com aquilo que o senhor presidente disse porque o PSD disse que tinha 16 e tem aqui um conjunto de deputados que aqui não deviam estar e estão. E eu vou ser o primeiro a sair para dar o exemplo àqueles que aqui estão e não deviam estar.” E assim o líder do PSD abandonou o hemiciclo.

[O momento em que Rui Rio abandona o debate quinzenal no Parlamento:]

Minutos antes o seu vice-presidente, Ricardo Batista Leite, tinha defendido: “Não devíamos estar aqui”. Isto porque o PSD defendia uma comissão permanente, com menos elementos, em vez de um hemiciclo com um mínimo de quórum: 46 deputados. Mas Ferro apanhou o PSD de na curva: “Senhor deputado, ficou decidido que íamos ter um quinto dos deputados na sala. O PSD devia ter 18. Sabe quantos tem? 36. Não é responsabilidade do presidente, mas da vossa bancada”. Rio que até apontou com o dedo quem estava a mais ficou furioso, deu razão a Ferro e só não bateu com a porta porque a de acesso ao plenário tem mola.

Rui Rio tinha feito chegar na segunda-feira às 20h36 um email a todos os deputados em que avisava numa frase a Caps Lock que a bancada devia “MANTER, A TODO O MOMENTO, APENAS UM GRUPO DE 16 DEPUTADOS“. No mesmo documento, Rui Rio acrescentava, no entanto, que os restantes deputados deveriam “apenas para registar presença e de seguida sair de modo a contribuir para que no plenário não estejam presentes mais de 46 deputados, garantindo o necessário espaçamento social.” Depois, deviam recolher aos gabinetes, até porque “qualquer deputado” a “qualquer momento” podia ser chamado para substituir um dos 16.

E quem eram esses dezasseis? Adão Silva, Afonso Oliveira, André Coelho Lima, Carlos Peixoto, Catarina Rocha Ferreira, Clara Marques Mendes, Duarte Pacheco, Helga Correia, Hugo Carneiro, Isabel Meirelles, Isaura Morais, José Silvano, Lina Lopes, Luís Leite Ramos, Ricardo Batista Leite e Rui Rio. Critério: dirigentes do partido, da bancada ou membros da Mesa da AR.

Na verdade, no momento em que Ferro disse que estavam 38, não estavam lá esse número de deputados, mas esse era o número de “log ins” feitos porque vários deputados que foram lá registar-se deixaram a sessão aberta. Mas, confirmou o Observador no local e em imagens posteriores na AR TV, o PSD tinha no hemiciclo mais de vinte deputados.

Carlos Silva era um dos deputados que estava lá e segundo Rio não devia estar. Nas imagens gesticula, como quem reclama. Mas ao Observador explica que sabia que não devia estar ali e disse apenas no momento: “Agora já não posso assistir à intervenção do meu partido?”

O mesmo deputado conta ao Observador que ouviu ainda no carro o início da intervenção e que tinha acabado de se sentar quando Rio deu conta que estavam ali deputados que não estavam na lista do líder. Explica ainda que vários computadores tinham o registo feito e que teve de mandar um “log in” abaixo para iniciar sessão e marcar presença.

Na sala no momento que Rio deu o ‘murro na mesa’ estavam ainda deputados fora da lista como Artur Soveral, Margarida Balseiro Lopes, Paulo Neves ou Carlos Eduardo Reis.

Um dos deputados presentes, que optou por não se identificar, queixa-se que “a culpa é do Rio, porque deveria ter feito como o PS: só convocou os que iam participar no debate, não incentivou a que se registassem”. Um outro deputado do PSD diz que “foi uma parvoíce do Ferro, que não estavam lá 38, e outra parvoíce do Rio, que exagerou na reação”. Outro lembra ainda: “Estávamos todos convocados a ir, esse foi o pecado original. Era suposto estarmos todos nos gabinetes.”

Afinal até agora já podem ter faltado alguma coisas

À direita, do CDS e do Chega, vinham sobretudo dúvidas sobre as palavras de Costa no dia anterior sobre a capacidade do Serviço Nacional de Saúde para fazer face a esta crise pandémica. O primeiro-ministro garantiu na TVI que “até agora não faltou nada nem é previsível que venha a faltar o que quer que seja”. Não? “Não digo que não tenha faltado algum bem”, disse no debate quinzenal quando Telmo Correia o confrontou com a afirmação da noite anterior.

Costa entre o “otimista irritante” na saúde e o profeta do “tsunami” económico

E na resposta ao PSD — que voltou a jurar “cooperação” — já tinha elencado a lista de encomendas que resultou do “esforço enorme” no combate ao coronavírus “num mercado rarefeito”: 380. 482 batas; 549.837 fatos de proteção; 6.813.259 de luvas esterilizadas; 10.674.459 luvas não esterilizadas; 368.397 máscaras com viseira; 17 145.762 máscaras cirúrgicas; 8.665 775 máscaras cirúrgicas específicas; 743.575 protetores de calçado; 1.262.472 toucas.

Também voltou a falar nos testes comprados, já que tanto Telmo Correia como André Ventura como João Cotrim Figueiredo (do Iniciativa Liberal) questionaram sobre se não seria útil aumentar o número de testes feitos. Costa não se alongou sobre o assunto, disse que não “há nada na comunidade científica sobre a vantagem de testes generalizados” e garante que eles servirão em primeiro lugar para “os que têm de intervir na primeira linha e a população de particular risco”. É para “usar com conta peso e medida tendo em conta a utilidade efetiva para conter infeção”.

Ainda referiu o que já se sabia desde a conferência da manhã. Que o excesso de procura por algum material está a atrasar as encomendas feitas, caso dos 500 ventiladores portugueses que custaram cerca de 9,3 milhões de euros e foram comprados à China.

Houve pouca picardia política para um quinzenal. Exceção feita para o tom ríspido com André Ventura, com Costa a garantir que os “números são fiáveis” e que “a última coisa de que precisamos é de alimentar boatos e pôr em dúvida a informação de entidades técnicas competentes e insuspeitas”. E, claro, para o deputado Cotrim Figueiredo, que Costa provocou: “Nada como uma boa crise para transformar um bom liberal num intervencionista. É uma longa tradição dos liberais portugueses: assim que chega a crise, aqui d’el rei que venha o Estado para nos salvar. Deixou de ser o deputado da Iniciativa liberal, para ser deputado da Iniciativa Estatal”. Mas ficou por aqui.

A líder do Bloco de Esquerda critica o facto de os privados estarem a fazer testes sem receita, a 100 euros cada teste, quando custam 30 euros e pergunta ao primeiro-ministro se “esta não é altura para fazer requisição civil aos privados, com os meios e hierarquia necessário”?

Catarina Martins diz que requisição é “provável” e é “melhor fazê-la mais cedo do que mais tarde” e antes de o serviço estar em rutura.

O primeiro-ministro, António Costa, diz que está a “articular com setor privado, social, e forças armadas” em função “com os piores cenários de evolução”, já que é “para esses” que o “país tem de estar preparado”. Costa diz que as Forças Armadas têm já duas mil camas preparadas e também com “unidades de hotelaria, para que hotéis que estão vazios possam alojar doentes, para libertar espaço em hospitais”.

Costa diz que se for necessário, recorrerá “à requisição civil”. Até agora não foi preciso, garante.

‘Fresh money’ e eurobonds para combater a crise que aí vem

A pergunta já provavelmente estava combinada com o grupo parlamentar do PS, que através do secretário-geral do PS, José Luís Carneiro fez a pergunta que se podia resumir da seguinte forma: o que pode a União Europeia fazer por nós. António Costa tinha muito coisa atravessada por dizer. E começou pelo princípio.

Lembrou que, com ele e Centeno, Portugal voltou a ser o “bom aluno” europeu: “Portugal era e tem sido justamente visto como um país que fez uma grande execução orçamental.” E um aluno com distinção, que não só não teve défice como excedente um ano antes do que prometia: “Dentro de dias saberemos o saldo orçamental de 2019, com grande probabilidade termos tido um saldo orçamental positivo.”

Apesar disso, não está a ser recompensado. Os juros de Portugal foram logo atacados pelos mercados. É aqui que Bruxelas, reconhecendo o esforço de bom aluno, devia entrar. Mas não é o que Costa está a ver acontecer: “Não vale a pena enganarmo-nos uns aos outros. Quando a União Europeia fala num plano de 37 mil milhões de euros [para combate ao coronavírus], sabemos que não é dinheiro novo, mas a possibilidade de reprogramarmos o que já estava a nós atribuído no âmbito do Portugal 2020. A flexibilização ajuda-nos, claro, mas priva-nos de ter músculo económico”. E por isso faz um apelo a Bruxelas para que haja ‘fresh money’ quanto antes: é preciso “uma resposta já: dinheiro novo”.

Além disso, como tem dito nos últimos dias Costa defende um “grande programa de investimento à escala europeia” e nem está preocupado com o nome: “Podem chamar-lhe Marshall, Von der Leyen, o que quiserem. Mas que precisamos desse plano, precisamos.”

Catarina Martins picou o primeiro-ministro, lembrando que a Alemanha rejeitou a hipótese de eurobonds — emissão de dívida conjunta dos países da zona euro — e o que pensava disso. A solução já foi defendida entre 2011 e 2014 pelo líder do PS, mas esse líder chamava-se António José Seguro. António Costa nunca foi adepto dos eurobonds. Mas agora as circunstâncias mudaram e até já há quem os renomeie de “coronabonds”, já que seriam impulsionados pela crise do coronavírus.

O primeiro-ministro não teve problemas de recuperar uma das bandeiras de seguro no tempo da troika, dizendo que “era simbolicamente muito importante poder haver uma emissão conjunta de dívida titulada por ‘eurobonds’ ou ‘coronabonds’, ou como lhe queiram chamar“. Esta resposta, defende Costa, serviria “não só para apoiar as necessidades de financiamento, mas também porque era uma mensagem política fortíssima que a Europa dava no seu conjunto a todo o mundo”.

Artigo atualizado às 17h20 do dia 25 de março porque referia o deputado Luís Leite Ramos como fazendo parte da lista de Rui Rio e, ao mesmo tempo, entre os deputados que não deviam ter ido ao plenário. Só estava no primeiro grupo.