O acesso por parte de todos os imigrantes, incluindo os por regularizar, a direitos básicos, nomeadamente à saúde e às prestações sociais, “é importante (…) para lá da pandemia” de Covid-19, reconhece a alta-comissária para as Migrações, Sónia Pereira.

Em finais de março, o Governo publicou um despacho informando que todos os cidadãos estrangeiros com processos pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) à data de 18 de março, quando foi declarado o estado de emergência, passariam a ter acesso às prestações sociais e aos serviços de saúde nas mesmas condições dos cidadãos nacionais.

“Criar essa possibilidade foi excecional e um sinal de que existe essa vontade política, que é muito importante, de dar a todos a possibilidade de existirem de forma plena, numa sociedade, com acesso a direitos”, considera.

Sónia Pereira sublinhou que não lhe compete “dar a garantia” de que o mecanismo criado pelo Governo sobreviverá à pandemia, mas não esconde que “é importante que haja acesso a direitos básicos… para lá da pandemia”.

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Assinalando que “há coisas positivas que se instalam em momentos de crise” e que “pode ser que algumas delas possam perdurar”, a alta-comissária sublinha que “tudo também depende dos contextos que viermos a enfrentar no futuro, as decisões que possam vir a ser tomadas provavelmente não vão estar desligadas do contexto, quer económico, quer das necessidades sociais e de saúde”.

Reconhecendo que o número concreto é “difícil de obter”, Sónia Pereira recorda que, em Portugal, para entrar no sistema e iniciar o processo de regularização, um migrante tem apenas de fazer uma “manifestação de interesse” de que vem para trabalhar, “por conta de outrem ou conta própria”.

“Não me parece que seja expectável pensar que há muitas pessoas que possam ter ficado de fora desse regime”, acredita, ainda que admita que possa haver “alguma questão com aqueles que chegaram após” a data da declaração do estado de emergência.

As associações que trabalham junto das comunidades imigrantes e as entidades públicas responsáveis “têm feito um excelente trabalho na divulgação, mas também na sensibilização dos serviços” para a proteção legal dos imigrantes, realça Sónia Pereira.

“Não basta sair um despacho, é importante que depois esse despacho seja acompanhado de um trabalho de terreno muito eficaz”, salienta a especialista em migrações e políticas migratórias, áreas em que trabalha desde 2000.

Pessoas de origem diferente têm “uma desvantagem clara”

Sónia Pereira não responde diretamente à pergunta se Portugal é, ou não, um país estruturalmente racista. Prefere deixar uma sugestão: a análise dos indicadores que permitem perceber o que fazem na sociedade portuguesa — “que oportunidades têm, onde estão no mercado de trabalho, na educação?” — as pessoas étnica e culturalmente diferentes.

“Há uma desvantagem clara, que é estrutural”, reconhece, assinalando que tem havido “avanços” e que as segunda e terceira gerações, descendentes de imigrantes, chegaram a patamares superiores comparativamente com os seus antecessores.

“Mas ainda há barreiras que estão vinculadas a uma determinada pertença ou origem nacional”, assinala, clarificando que esses obstáculos “continuam a afetar de forma desproporcional pessoas que têm uma origem diferente”.

Por isso, Sónia Pereira sugere a quem quer olhar para o racismo “de uma forma séria” que não fique “só” pelo discurso e verifique os dados existentes. E o que nos dizem esses indicadores? Apontam para uma “sobrerrepresentação” de pessoas de certas origens ou etnias “em determinados setores profissionais e ocupacionais, em áreas habitacionais mais precárias, maior abandono escolar ou insucesso escolar, menor capacidade de acesso ao ensino superior”, enumera.

Combater o racismo “é um compromisso de todos” e não só do Estado. “O debate é de todos. Aquilo que os serviços públicos podem fazer, desde já (…), é refletir, nos seus próprios serviços, de que forma é que estão, ou não, a criar condições para a igualdade de acesso”, aponta, frisando que o debate sobre o racismo passa pelos locais de trabalho, pelas áreas de residência, pelos meios culturais.

“As manifestações são importantes para dar visibilidade a situações que estão a acontecer, mas [a questão do racismo] não se esgota na manifestação, é importante que a manifestação dê lugar a outros espaços de debate, de pressão, de diálogo, de envolvimento”, sugere.

Sónia Pereira recebeu “com tristeza” os resultados do último European Social Survey, que revelou que quase dois terços dos portugueses revelam alguma forma de racismo. “Devemos preocupar-nos”, reconhece.

É preciso investir em mediadores interculturais

Portugal precisa de “um investimento ainda grande nos mediadores interculturais”, apostando na sua profissionalização e clarificando o seu estatuto, considera a alta-comissária para as Migrações.

Sónia Pereira justifica a falta desse investimento com o facto de Portugal só no início dos anos 2000 se ter juntado ao lote de países com capacidade para captar imigrantes, fora da esfera de atuação ligada à sua história colonial, e ter diversificado os perfis migratórios (reformados, estudantes internacionais, processos de reagrupamento familiar).

Neste momento, é difícil saber quantos mediadores interculturais existem, porque estão “numa zona cinzenta de enquadramento”, reconhece. Muitos foram incluídos na função pública, no quadro da regularização extraordinária de trabalhadores, e outros há que são tradutores com competências de mediação.

“Precisamos de formar melhor e mais tradutores também”, acrescenta a alta-comissária, notando que, muitas vezes, os tradutores não são fluentes em português e traduzem para o inglês.

“Os municípios também têm feito um investimento em mediadores que possam fazer a ponte entre a comunidade local e as comunidades imigrantes ou ciganas”, destaca Sónia Pereira, dando números concretos neste caso: existem 42 mediadores em 12 municípios, ao abrigo de um programa financiado pelo Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (POISE).

Reconhecendo que é preciso “consolidar” a figura do mediador, Sónia Pereira diz que é “uma área de crescimento que vem associada à evolução de Portugal enquanto país acolhedor de imigrantes”.

Questão da habitação é estrutural para o país

A pandemia da Covid-19 foi democrática, mas “o confinamento foi desigual” e deixou a descoberto os já menos protegidos, nomeadamente na questão da habitação, “estrutural para o país”, considera a alta-comissária para as Migrações.

Já as “carências habitacionais” são tema recorrente de quem contacta o Alto Comissariado para as Migrações. Essas carências habitacionais estão identificadas e o Governo “deu fôlego a esta área” para se encontrar novas soluções de habitação, frisa Sónia Pereira.

Sobre os denominados hostels — habitações onde chegaram a ser identificados alguns focos de transmissão do coronavírus –, “são uma situação temporária, transitória, para dar resposta a fluxos de requerentes de asilo que nos chegam de forma inesperada”, assegura a responsável.

Sónia Pereira também relaciona a questão de não se conseguir interromper as cadeias de transmissão na Área Metropolitana de Lisboa com as condições de habitação.

O modelo de desenvolvimento da Área Metropolitana de Lisboa assenta em “residências muito periféricas, locais de trabalho longe das áreas de residência”, o que, associado à “sobrerrepresentação de trabalhadores imigrantes em alguns setores” que se mantiveram em funcionamento durante o confinamento, explica o “impacto”.

Além disso, lembra, “a situação da habitação em Lisboa já não era muito favorável quando tudo isto se iniciou” e tinha já levado, que a que “muitas pessoas fossem empurradas, cada vez mais, para fora das zonas mais centrais” da capital.

“A questão da habitação é estrutural para o país, é algo em que estamos a investir e a trabalhar, nomeadamente no acesso a soluções de habitação mais estáveis e duradouras e com menos nível de precariedade, que possam também passar por um investimento maior em concelhos fora da Área Metropolitana de Lisboa”, frisa.

“Aquilo que aconteceu inicialmente é que nós fomos todos apanhados, todos com as nossas vidas, cada um no seu espaço habitacional e profissional, igualmente”, observa Sónia Pereira.

Mas, distingue, “o confinamento foi (…) desigual”, desde logo porque certos grupos de trabalhadores nunca deixaram de trabalhar — saúde, logística e distribuição de alimentos, limpezas, construção civil.

“O confinamento protegeu uma parte importante das pessoas”, mas outras “tiveram que continuar a trabalhar”. Ora, algumas dessas têm funções menos qualificadas, “vivem habitualmente em regiões mais periféricas, em condições habitacionais algumas delas mais precárias, com necessidade de deslocação em transportes públicos”, descreve.

“A própria estrutura social opera de forma mais ou menos segmentada, que protege mais quem ocupa certos segmentos sociais e tem melhor forma de se proteger, quer pelas condições de habitação, quer pela possibilidade de realizarem teletrabalho, de se deslocarem em viatura própria”, assinala a alta-comissária, constatando que esta desigualdade “não é novidade”.