Se dúvidas houvesse acerca do dono do copo de whiskey pousado no piano, o fim do vídeo – um dos mais belos vídeos dessa floresta de tesouros insondáveis que é a world wide web – retira-as: Vinicius levanta-se do seu lugar junto ao piano de Tom e, com a mão esquerda ocupada pelo microfone, usa a mão direita (que já segurava o cigarro) e pega no copo, levando-o para uma mesinha na frente do palco. E para que esta história não seja só mito, aqui fica o link:

Vinicius sentou-se ao pé do piano de Tom porque, como quem viu o vídeo notou, iam ambos cantar “Garota de Ipanema”, escrita por ambos – é uma canção-símbolo da cultura brasileira mas também da obra de Vinicius de Moraes: a vida deve ser boa, com amigos e vadiagem, mas do nada o amor irrompe e torna-se mais importante que tudo e umas vezes vem a tristeza e outras a alegria e tanto uma como outra devem ser celebradas com álcool, nomeadamente whiskey.

Por mero acaso o vídeo – gravado ao vivo nos estúdios da RTSI Televisione Svizzera (Itália), em 18 de outubro de 1978 e tendo ainda como protagonistas Toquinho e Miúcha – acaba por de certo modo reproduzir o momento de criação de Garota de Ipanema, e vale a pena recordar a história, hoje, data em que passam 40 anos da morte de Vinicius: na esquina da então rua Montenegro com a Prudente de Morais situava-se o antigo bar Veloso, onde o “poetinha”, como Jobim lhe chamava, e o próprio Jobim se encontravam regularmente para conversar e beber e ver passar as moças.

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Um dia os dois ficaram perplexos perante a passagem de uma moça, chamada Helô Pinheiro, a caminho do mar. Seguiram-na com o olhar e depois seguiram de imediato para a composição de “Garota de Ipanema”, com versos escritos por ambos e cada um a dar o seu jeitinho na melodia. Claro que Vinicius não compunha da forma tradicional, não era um instrumentista, mas a sua voz era mais que suficiente para trautear o que queria ouvir e, com um músico do calibre de Jobim a seu lado, não admira que tenha saído dali uma obra-prima.

Isto é o que a pessoa não-melómana normalmente sabe de Vinicius de Moraes: foi o tipo que escreveu a letra de “Garota de Ipanema”, parece que fez outras letras com Tom Jobim. Mas essa é uma síntese demasiado simplista, a começar pela exclusividade dos parceiros: Vinicius fez parelha com Jobim, sim, mas também manteve longas parcerias com Toquinho, Carlos Lyra e Baden-Powell, e parcerias pontuais com outros músicos, como Edu Lobo e Chico Buarque.

Ainda não chega de saudade: Vinícius de Moraes “é eterno”

E não era apenas um letrista, porque compor uma canção com Vinicius era parte de um processo a que podemos chamar viver: as canções nasciam de jantares com muitos copos e Vinicius tinha ali um princípio de uma letra e um seu comparsa pegava num violão e começava a compor para aquela letra, sendo que às vezes Vinicius tinha uma melodia inicial, outras a melodia vinha do parceiro que sabia tocar um instrumento e Vinicius dava um jeitinho e às vezes até havia quem escrevesse as letrinhas a meio com Vinicius.

E também isto é redutor, porque se quisermos listar as diversas valências do ser humano conhecido por Vinicius de Moraes teríamos de lhe chamar diplomata, já que foi assim que ele ganhou a vida durante muito tempo, jornalista, tendo em conta que escreveu para jornais (nomeadamente crítica de cinema), dramaturgo (desde novo), e finalmente chegaríamos ao poeta, talvez a sua função máxima, não fora dar-se o caso de também ser cantor e compositor – e mesmo assim estaríamos a esquecer a fonte desta criatividade toda, a boémia, na qual reside a essência deste homem cheio de contradições.

Um exemplo demonstrativo dessas contradições: em 1941, ano do seu retorno ao Brasil, Vinicius arranjou emprego como crítico de cinema no jornal “A Manhã”. Mas anos antes, em 1936, fora empregado pelo Ministério da Educação e Saúde como censor cinematográfico. Consta que terá sido o escritor americano Waldo Frank a convertê-lo ao anti-fascismo – e Vinicius terá ido um pouco mais longe, enamorando-se dos ideais comunistas.

Filho da classe médio-alta do Rio de Janeiro – o seu pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, era funcionário da Prefeitura – cresceu rodeado de artes: o pai era poeta e violinista amador, a mãe era pianista amadora. Mais tarde ingressou em Direito (licenciando-se em 1933), onde travou amizade com o romancista Otávio de Faria, que o terá incentivado a escrever. Não há praticamente um acontecimento na vida de Vinicius em que um amigo não esteja envolvido – o homem cantou muito o amor, mas também a amizade, e viveu para contar e cantar.

A sua forma de viver seria, talvez, um pouco inóspita num Brasil conservador. Um exemplo disso é a sua carreira diplomática: já depois de flirtar com ideias fascistas na juventude e de se converter à esquerda, concorreu ao Ministério das Relações Exteriores e em 1943 foi aceite, assumindo o seu primeiro cargo diplomático em 1946, como vice-cônsul em Los Angeles. Mais tarde ainda trabalharia em Paris e em Roma, onde travou amizade com o escritor Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico – há descrições épicas de jantares com Sérgio.

Vinicius e Toquinho em 1973

Em 1968, estava Vinicius em Portugal para atuar num concerto com Baden Powell, quando recebeu a notícia de que fora destituído do corpo diplomático; o memorando de demissão dizia “Demita-se esse vagabundo” e, anos mais tarde, foi dito que Vinicius passara três meses sem aparecer no consulado brasileiro de Montevidéu, e que passaria o seu tempo nos botequins do Rio de Janeiro, a tocar viola com um copo de uísque do lado.

Tendo em conta a mitologia ao redor de Vinicius, quase que dá para acreditar na história, não fora dar-se o caso de Vinicius ter sido demitido aposentado pelo Ato Institucional Nº 5, criado pela ditadura militar brasileira, iniciada a de Abril de 1964 – e Vinicius ser um opositor deste regime.

Entretanto já ele tinha uma carreira musical: deixando de parte o que escreveu e musicou para peças de teatro e até deixando de parte os seus livros de poesia, importa saltar para 1956, quando Vinicius, então com 43 anos, conhece um jovem de 29 anos chamado António Carlos Jobim, que abandonara os estudos para tocar piano em botequins e compor e arranjar canções por encomenda. Basta nomear três canções para ficar demonstrada a maravilha que foi esta parceria: “Chega de Saudade”, “Eu sei que vou te amar” e “Garota de Ipanema” são tesouros da delicadeza que ficarão para sempre na história da humanidade.

O melhor estava para vir e o melhor era o nascimento de todo um movimento, a bossa-nova; em 1958 Elizeth Cardoso grava “Canção do Amor Demais”, álbum no qual se incluíam, além do tema-título, outras canções da dupla Vinicius / Jobim, como “Estrada Branca”, “Outra Vez” e “Chega de Saudade”. As guitarras desse disco pertenciam a um tal João Gilberto e nascia ali uma nova forma de fazer música: com um pé no samba e outro no jazz, melodias delicadas e vocalizações ainda mais suaves a bossa-nova chegou e levou tudo a eito (mas de mansinho).

Em 1961, Vinicius encontra um novo parceiro criativo, Carlos Lyra, com quem criou essa sumptuosa “Coisa Mais Linda” – e nesse mesmo ano pôs pela primeira vez a sua voz em disco, cantando “Água de Beber” e “Lamento no Morro”, que ainda vinham do tempo com Jobim. Houve bandas-sonoras, letras para chorinhos, livros de poesia – e um novo companheiro, Baden-Powell.

Quem não tiver paciência para escavar discografias inteiras que vá ao Youtube ou ao Spotify e ouça apenas esse monstro de canção que é “Canto de Ossanha”, composto a meias por Vinicius e Baden-Powell. Aliás, aproveitem e fiquem já com a minha versão favorita, interpretada por Vinicius e Toquinho:

Ainda não cheguei à parceria com Toquinho propriamente dita e esqueci-me por completo de mencionar que Vinicius, um galanteador nato, um Hemingway com doçura no lugar do machismo, casou por nove vezes e é preciso ter muito amor no coração, muita fé no futuro e uma inumana capacidade de não manter rancor para casar nove vezes.

Mais uma vez: ainda não cheguei à parceria com Toquinho e esqueci-me por completo de mencionar que este cidadão do mundo (cuja cabeça nunca saiu do Brasil) que trabalhou um ano em Londres, na BBC, era amigo de Pablo Neruda e do enormíssimo realizador Orson Welles, adorava receber e cozinhar e teve cinco filhos e que foi encontrado sem vida, na sua banheira, pelo próprio Toquinho, faz hoje 40 anos.

Toquinho, um enorme guitarrista, foi o último grande parceiro musical de Vinicius – foi esta a dupla que escreveu “Para viver um grande amor”, “Cotidiano nº 2” e acima de todas (e são muitas) as grandes canções que escreveram juntos, está “Tarde em Itapoã”, que vos mostro em vídeo do mesmo concerto com que abri:

Havia tanta coisa para dizer, dos livros infantis que Vinicius escreveu, da frase genial que inventou para provar que o whiskey era o melhor amigo do homem (“É o cachorro engarrafado”), da sua mania de usar diminutivos em tudo e com todos (que Jobim gozou chamando-lhe “poetinho”), de ter começado a fazer poemas aos nove anos, mas que fique claro o fundamental: que Vinicius de Moraes adorava viver, vivia para estar com os amigos, uma boa amizade, para ele, implicava uma boa refeição, bem regada, e que amou como Messi quebra recordes: falhando ocasionalmente, mas nunca parando de tentar.