Quando Eduardo Ferro Rodrigues anuncia que o Orçamento do Estado para 2021 foi aprovado — apenas com os votos a favor do PS, e as abstenções do PCP, PEV, PAN e das duas deputadas não inscritas — o deputado socialista que esteve no centro das negociações, João Paulo Correia, lança um olhar à líder parlamentar, Ana Catarina Mendes, como que a pedir-lhe permissão para aplaudir. Permissão concedida, o PS aplaude, isolado. A verdade é que o segundo Orçamento da era “geringonça-sem-acordo-escrito” foi o que mais teve de penar até ver a luz do dia. O Bloco ficou pelo caminho, com Costa a acusar o velho parceiro de estar a juntar-se ao PSD para “queimar o país”; o PCP fez voz grossa e esticou até onde conseguiu, e o Governo saiu derrotado no Novo Banco, a ameaçar não cumprir o que o Parlamento decidiu. Mas vivo, ainda assim. E com promessas de empenho para renovar a união à esquerda perante o inimigo comum: a ‘cheguização’ do PSD.

Apesar de a relação dos socialistas com o Bloco estar para lá de tensa, os sinais de uma futura união à força vieram de todos os lados, do PS ao Bloco de Esquerda, passando pelo PCP, e também pelo PAN e os Verdes. Resta saber se em ano de autárquicas e depois do que aconteceu neste processo, com acusações de traição de parte a parte, são promessas para levar a sério.

A direita, por sua vez, apareceu apostada em decretar o fim da “geringonça” e da governação de António Costa, arriscando adivinhar que este terá sido o último orçamento deste Governo. Rui Rio já faz contas a um Retificativo, lá para maio, para o Parlamento autorizar a verba para o Novo Banco, apostado que está em fragilizar o Governo ao máximo até estar em ponto de rebuçado para cair. António Costa até fez o favor de lhe escrever o guião: no dia em que o PS precisasse do PSD para governar, então o Governo caía. Que seja, vai desafiando Rio.

PS ataca forte mas jura que está disposto a esquecer

Os ataques do PS ao Bloco foram uma constante durante todo o processo orçamental, desde que o partido liderado por Catarina Martins se colocou fora das contas e anunciou o voto contra. Repetiu esse mesmo voto esta quinta-feira e o PS atacou com tudo na intervenção final, com a líder parlamentar Ana Catarina Mendes a ser dura nos ataques.

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“O BE não conta para a solução mas para a pequena confusão. Foi o BE que esteve ausente neste debate, desertou nas respostas que o Orçamento tem, votou contra a dedicação plena dos médicos, absteve-se na calendarização dos profissionais de saúde, ignorou que havia um debate para o qual podia ter contribuído”, disse a socialista que até chegou a acusar os bloquistas de estarem a “abrir caminho a que Portugal volte à austeridade, desta vez com uma direita de braço dado com a extrema-direita populista”.

Fecho de porta com estrondo ao parceiro dos últimos cinco anos? Talvez não. E isto porque no mesmo discurso, a mesma líder parlamentar lançava para que as duas partes possam “voltar a convergir no essencial”, “sem encenações, estados de alma ou angústias”. “Quanto mais cedo, melhor”, desafiou. Difícil parece ser convencer o primeiro-ministro que, quando saiu do debate, nem referia o Bloco pelo nome, lamentando “que partidos tenham desertado ou não resistido à tentação populista, colocando em perigo a credibilidade internacional”.

No fim do debate, António Costa não parecia o primeiro-ministro que tinha acabado de conseguir aprovar o sexto Orçamento do Estado sem uma maioria parlamentar do seu partido no Parlamento. A derrota no Novo Banco, mesmo ao cair do pano, fez o primeiro-ministro sair do hemiciclo a chamar “irresponsável” ao PSD e a afastar o BE do seu novo grupo, agradecendo a “todos aqueles que não desertaram perante as dificuldades da crise”. Reatar depois desta acusação é possível?

Bloco rompeu, mas espera que o PS volte à base

Para o Bloco, sim. O Bloco de Esquerda sai deste processo orçamental totalmente chumbado aos olhos de Costa mas continua na sua: não se “arrepende” de votar contra este Orçamento do Estado, até porque está convencido de que, no futuro, e não obstante esta nega dos bloquista, o PS vai ser mesmo forçado a negociar à esquerda. Vai ser forçado a virar-se para o BE. Tudo porque, por oposição, haverá o fantasma açoriano de uma maioria de direita com o apoio parlamentar do proeminente e assustador Chega.

Foi nesse sentido que, no encerramento do debate, Catarina Martins agradeceu, ironicamente, a Rui Rio: “Nos últimos anos, ninguém fez tanto em tão pouco tempo pelo reforço da posição da esquerda como Rui Rio. Ao escolher uma aliança com a extrema-direita xenófoba, o PSD isolou-se. Mas também mostrou ao PS que, fracassada a ambição da maioria absoluta, só poderá governar se procurar um acordo com a esquerda”. Tudo dito. Ou seja, com a “cheguização do PSD”, o PS ou procura a direita ou não tem outra hipótese senão a de fazer um “contrato para políticas sociais” com a maioria da esquerda. É a direita do PSD virada para Ventura, ou nós, disse.

Para isso, Catarina Martins até já tem caderno de encargos: “Um SNS com a capacidade suficiente e carreiras profissionais em exclusividade, uma proteção social baseada no emprego e no combate à pobreza, e o fim das leis laborais da troika”. “Não foi agora, mas será”, disse a coordenadora bloquista confiante de que as bandeiras que o PS não quis agarrar agora vai ter de as agarrar mais tarde ou mais cedo.

PCP diz que não será por culpa sua que esquerda cai (e direita sobe)

Ao contrário do BE, o PCP manteve-se no barco a usar o seu trunfo de parceiro (quase) único e a esticar a corda para influenciar ao máximo o Orçamento, e incluir o maior número de medidas no sentido de “melhorar” o documento. Não terá sido o suficiente para “responder às necessidades do país”, segundo disse Jerónimo de Sousa no discurso de encerramento, mas foi o possível — daí que o PCP tenha viabilizado o Orçamento através da abstenção.

O resto, o que acontecer daqui para a frente, dependerá da “vontade política do Governo” para concretizar as medidas e dar resposta aos problemas do país. Mas quanto ao PCP, Jerónimo de Sousa, que tem este fim de semana o congresso que irá decidir a sua recondução como secretário-geral do partido, não irá certamente ser obstáculo à maioria de esquerda que, se colapsar, dará palco a uma maioria de direita como “novos protagonistas”. “A abstenção do PCP não se confunde nem a abre a porta àqueles que apostam numa crise política e numa alternativa de direita com velhos e novos protagonistas”, disse Jerónimo de Sousa.

Os Verdes também sabem que o Governo podia ter ido ainda mais longe, mas mantém-se dentro do barco, através da abstenção, e o PAN, que também negociou com o Governo e que viabilizou o documento com a abstenção, deixa avisos: não é só na hora de votar que deve haver negociações. “O diálogo é o único caminho” para a esquerda se manter unida, e não dar lugar à direita. E quando o PAN diz diálogo, quer dizer diálogo permanente, o ano todo, e não apenas “diálogo de conveniência”.

Para a direita, é o início do fim de Costa

Uma coisa foi comum a todos os partidos da direita nos discursos de encerramento do Orçamento do Estado: a ideia de que o Governo está em fim de ciclo e que a geringonça sai daqui a coxear. Moribunda. Será? Foi precisamente André Ventura — aquele contra o qual a esquerda se quer unir — que deu o mote a esta tese. “Este será provavelmente o último Orçamento socialista dos próximos anos”, começou por dizer, afirmando que ficou claro que aqueles que deram a mão ao Governo agora se vão embora “dizendo que nunca tivemos nada a ver com isto”.

“O Governo sabe que não tem caminho para continuar”, continuaria o deputado do Chega, dizendo logo de seguida que ao fim de um segue-se o início de outro, e põe-se a si no pack da direita que se diz preparada para governar. “Não faltaremos à chamada e estaremos prontos para governar com dignidade este país”, disse, esquecendo por momentos todas as vezes em que disse que nunca se aliaria aos partidos do sistema e que só governaria quando tivesse votos para tal. O que aconteceu nos Açores, em que o Chega viabilizou um governo do PSD/CDS/PPM pela via parlamentar foi só um primeiro passo, diz agora Ventura.

Também o deputado do CDS João Almeida criticou o facto de o Governo sair deste embate aos tropeções, a coxear, cada vez mais dependente do “anacronismo comunista e do radicalismo animalista”, o que, no seu entender, é insustentável. Isaura Morais, do PSD, usaria mesmo a expressão “a geringonça vai coxa” para decretar o fim da atual solução política, que pela primeira vez viu o BE a saltar fora e a votar contra: “é o fim do prazo de validade” do Governo, disse, acusando o Governo de ter cedido em tudo ao PCP com a finalidade apenas de chegar vivo ao dia seguinte. Há dias, Rio, em entrevista à TVI, apostou que a legislatura não ia chegar até ao fim e disse acreditar que está mais próximo de chegar a primeiro-ministro. Já cheira a poder. Será?