Nome: O Mapeador de Ausências
Autor: Mia Couto
Editor: Caminho
Páginas: 412
Preço: 18,90€

A capa de “O Mapeador de Ausências”, de Mia Couto (Caminho)

Logo de início, Diogo Santiago, um prestigiado intelectual moçambicano há muito residente no exterior, volta à Beira para ser homenageado pelos compatriotas. Do seu olhar, chega ao leitor a estranheza entrelaçada com a familiariedade, uma procura, ou uma identificação, do passado no presente. A sua vida de criança fez-se num país colonizado e o abismo entre pretos e brancos fica evidente pela voz das personagens: “Cruzei-me com um preto de aspeto civilizado” (p. 74).

Através das rememorações de Diogo Santiago, branco, filho de um poeta e de uma mulher prática , o leitor chega aos lugares onde a tropa colonial cometeu massacres, assim como às perseguições e às prisões da PIDE. A partir daí, desfiam-se as clivagens políticas, as traições, as animosidades intransponíveis que não parecem dissipar-se com o passar dos anos. Assim, parece que a política não é uma coisa estanque, é parte da vida como o resto, só deixa as marcas do que é prático. Por vezes, Mia Couto atinge uma dimensão psicológica fascinante e o leitor pergunta-se se o mundo será pequeno para uma personagem que não entende de que forma a sua traição maculou outros. A vida em colonização, no meio do racismo e da guerra, terá sido tão natural que uma denúncia à PIDE não passaria de uma pequena facada inglória?

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Ao mesmo tempo, Mia Couto é exímio a mostrar a relação de alteridade em que se baseou a guerra, a desumanização do outro que permitiu a violência. Repare-se neste excerto:

“O capitão da nossa companhia não se cansa de nos advertir: não olhem para as pretas, não falem com os pretos. Se olharem para as pretas nos olhos estão tramados: nunca mais puxam o gatilho. Se derem atenção aos pretos, eles desatam a contar-vos histórias e acontece como nas Mil e Uma Noites: nunca mais vocês os matam. Ainda bem que eles falam uma outra língua, disse o capitão. Se os entendêssemos, nesse mesmo momento deixaríamos de ser inimigos. Para os matar há que lhes vendar os olhos e fechar-lhes a boca.” (p. 148)

Um pouco mais adiante, parece que lemos a sentença: “(…) os portugueses queriam punir os culpados. Mas os culpados não eram esses que foram mortos. Os culpados são todos os que se apresentam ao mundo com a sua raça” (p. 252). Dentro desta ideia, caberá dar atenção a um excerto que envolve Jerónimo Fungai:

“Aterrado, o bairro cerrou as portas e trancou as janelas. Ninguém queria ouvir a indignada fúria de Camila. Ninguém queria aceitar o que parecia evidente: embrulhados sob um mesmo lençol, os dois jovens eram amantes. A polícia apareceu para registar a versão antecipadamente confirmada: o negro Jerónimo Fungai era um violador e tinha sido surpreendido em flagrante delito. E, sendo assim, o patrão agira em legítima defesa.” (p. 102)

Mia Couto não precisou de doutrinar ou de explicar o racismo. Ao invés disso, mostrou-o, o que fez com que aparecesse de forma inequívoca, alheia a discussões. Morto a tiro nos braços de uma mulher, Jerónimo Fungai foi difamado por ser preto, e foi a sua cor de pele que permitiu, e até pareceu legitimar, o crime que contra ele foi cometido. A acusação e a difamação serviram ainda para escamotear a verdade, para que não se assumisse ou aceitasse que ele e Camila eram amantes.

Em O Mapeador de Ausências, as redes familiares tecem-se numa narrativa que mostra a perspetiva de umas personagens sobre as outras. O autor apresenta personagens extraordinárias numa opção pela forma epistolar, que ajuda a compor a narrativa. Será, claro, a estratégica mais fácil de introduzir informação, mas Mia Couto propos-se a abranger e conseguiu-o, apresentando ao leitor uma intriga com surpresas em termos de conteúdo e estética.

Como ponto negativo, há que referir apenas uma tendência do autor para a poeticidade que nem sempre calha bem. Num conjunto tão amplo de personagens, densas e diversas, percebe-se que é a voz do narrador que se imiscui, já que a poeticidade não se coaduna com a ideia de oralidade (ou mesmo de monólogos escritos por tanta gente diferente), nivelando esteticamente todo o livro. O timbre das suas vozes lembram o de Mia Couto. É sempre difícil, em língua portuguesa, não quebrar a literariedade da prosa literária com a vulgaridade da linguagem oral, e o autor optou por pôr as vozes ao serviço do texto.

Assim como assim, conclui-se que esta é uma literatura que se faz de personagens, e portanto de gente, e portanto de vida. Mia Couto olhou para o outro e apresentou um universo bem montado, coerente e bem escrito. Ao invés de argumentar, mostrou, e trouxe para o centro da narrativa este tema que vai fazendo o seu caminho na ficção lusófona, ceifando dogmas, questionando versões, enfrentando a história. Não caiu na armadilha de querer escrever sobre um país como se o país não fosse a sua gente e trouxe para o campo literário o que não cabe noutro lado.