O Flamengo tinha acabado de ganhar à Portuguesa dos Desportos por 2-1 no Maracanã, em mais um jogo a contar para o Campeonato Carioca, com um autogolo aos 89′ e um remate decisivo de Arrascaeta aos 90+1′. Até por todas as dificuldades para arrancar o triunfo num arranque de temporada onde já tinha ganho a Supertaça do Brasil e a Supertaça Sul-Americana (uns meses antes tinha sido o Campeonato e Taça dos Libertadores), tudo apontava para que Jorge Jesus chegasse de forma sorridente à sala de imprensa para abordar nova vitória. Ao invés, o treinador português estava triste, abatido. E tinha mais do que uma razão para isso, nesse dia 14 de março de 2020.

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“Emocionalmente foi muito complicado, nunca joguei sem adeptos. Espero que seja o primeiro e último pois é aflitivo. Sentimo-nos incomodados. É uma prova de que não há futebol sem adeptos. É todo o aspeto emocional… Coronavírus, testes à equipa, preocupação, o que podemos ter, as nossas família… Tudo está a ser um problema grande dentro da estrutura. Eu sou português, sei muito bem o que se está a passar em Portugal. Já perdi alguns amigos… Perdi um em Portugal. Não tinha a sensibilidade para o que era isto mas é preciso pensar que não é só nos outros países. O Campeonato Carioca tem de parar, os jogadores não são super homens. O Flamengo está no risco. Temos contacto com uma pessoa, não sabemos o que pode acontecer. Espero que tenha sido o último jogo…”, disse então, numa declaração sentida e que não demorou a atravessar o Atlântico e a chegar a Portugal.

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Já depois da confirmação por parte da DGS que não existia qualquer vítima mortal do país por Covid-19, e através do Observador, Luís Miguel Henrique, advogado do técnico, explicou que esse amigo em causa, Mário Veríssimo, que durante largos anos foi massagista do Estrela e costumava almoçar e jantar várias vezes num grupo de amigos que Jesus tinha há décadas na Amadora, estava internado nos cuidados intensivos após contrair o novo coronavírus. Dois dias depois, a pior notícia chegou mesmo e o amigo acabou mesmo por falecer no Hospital de Santa Maria, por onde tinha passado no início da atividade, tornando-se a primeira vítima em Portugal da infeção. Entre a incerteza que se vivia no Brasil e no mundo, Jesus sentiu particularmente a notícia do que se estava a passar, só tendo voltado a treinar oficialmente quase três meses depois, fazendo um par de jogos para ganhar o Campeonato Carioca frente ao Fluminense e aceitar a proposta feita pelo Benfica para regressar ao país.

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Esta noite, quase dez meses depois desse dia triste, Jesus voltou à Reboleira num regresso muito saudado não só por todos aqueles que privaram com ele em décadas anteriores mas pelo próprio, que descreveu o Estrela como “o clube do coração, onde se fez homem e jogador”. E foram muitas as reportagens sobre este momento especial para o “Ruço” ou o “Carinhas”, dois nomes pelos quais também é conhecido, que foi recebido no Estádio José Gomes pelo atual presidente da SAD do Estrela, André Geraldes, antigo team manager do Sporting com quem teve sempre uma relação próxima nos três anos em que comandou os leões. Só faltou mesmo Mário Veríssimo.

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De forma inevitável, Jorge Jesus foi a grande figura do encontro que terminou com a vitória do Benfica frente ao Estrela por 4-0. E a Amadora veio literalmente à janela não só saudar a equipa encarnada mas também o treinador que cresceu como jogador e treinador do conjunto da Reboleira e que, em abril, voltou a ter uma demonstração da ligação forte que tem à zona que o viveu nascer ao contactar, através do seu advogado, a junta de freguesia da Falagueira-Venda Nova para oferecer equipamentos informáticos às crianças na altura do confinamento. Agora, saudou os adeptos presentes à porta do Estádio José Gomes, aproveitou para colocar a conversa em dia com o agora presidente do Estrela, André Geraldes (antigo team manager do Sporting) e chegou mesmo a tirar algumas fotografias com elementos da Cruz Vermelha presentes tendo sempre a máscara. Depois, vestiu a “pele” normal no banco, em determinados momentos fez ouvir bem a sua voz no recinto sem público, e saiu feliz.

“Esta é a minha terra, onde me apaixonei pelo futebol aos 11 anos. Não era nada disto antes, não havia bancadas. [O Estrela] está acima da média das outras equipas [do Campeonato de Portugal]. Acredito que esta equipa tenha um Campeonato para subir, para voltar à Primeira, que é onde merece estar, pela cidade e pelo excelente relvado. É uma equipa taticamente bem trabalhada mas os jogadores do Benfica levaram o jogo a sério. Sabíamos que se não estivéssemos concentrados podíamos ser surpreendidos. Os golos tiraram força anímica ao Estrela. Ganhámos normalmente. Depois do 1-0 as coisas ficaram normais e temos outra qualidade. Fizemos o que nos competia”, comentou Jorge Jesus na zona de entrevistas rápidas da TVI24, antes de falar do… confinamento.

“O país vai confinar mas penso que o futebol tem sido exemplo de como temos de viver com a pandemia. As equipas de futebol são bolhas controladas, testamos pelo menos uma vez por semana, onde podemos estar à vontade. Fora das equipas, em casa, é mais complicado. Só se proibirem a movimentação das pessoas pois o jogo não afeta. O futebol controla os atletas, controla a família deles, a família dos empregados…”, salientou.

Por fim, Jesus teve ainda uma palavra para o estreante Todibo, central emprestado pelo Barcelona que, segundo o técnico, só no último mês esteve a trabalhar na plenitude com o resto da equipa. “Foi um miúdo que chegou com cinco meses sem treino mas depois lesionou-se e esteve dois meses parado. Quase nunca o conheci bem mas neste último mês começou a trabalhar mais connosco. Tem qualidades físicas muito boas, não sabe ainda o posicionamento que a equipa quer mas mostrou que podemos confiar nele. Todos os que não têm jogado deram boa resposta. Era o que se pretendia. Mostrámos a diferença em alguns momentos”, concluiu, falando neste caso sobre o sexto jogador francês a representar a formação encarnada.