Doentes que já tinham patologia psiquiátrica e estavam estabilizados estão a chegar ao Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, com um agravamento de sintomas de ansiedade, depressão, insónia e alguns são internados com situações mais graves impostas pelo isolamento.

Ao fim de um ano de pandemia [Covid-19], realmente verificámos que há uma maior procura dos serviços nesta fase por alguns doentes” ao contrário do que aconteceu no início em que houve “uma grande restrição” dos doentes em ir ao serviço de urgência e às consultas, disse em entrevista à agência Lusa Joana Teixeira, médica psiquiatra do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), a propósito do aparecimento dos primeiros casos de Covid-19 em Portugal, no dia 02 de março de 2020. Segundo a especialista, “as pessoas isolaram-se e mesmo necessitando evitaram muitas vezes” ir ao hospital com receio de contrair Covid-19.

Agora nesta segunda fase [da pandemia] já se nota um maior cansaço das pessoas, já estão mais, não só sobrecarregadas do ponto vista da perturbação mental, já têm mais sintomas e vêm mais procurar ajuda porque realmente está a ser muito difícil lidar com o sofrimento no isolamento e, portanto, agora já verificámos um aumento do pedido de seguimento em consultas”, disse Joana Teixeira na entrevista à Lusa no hospital, a propósito do aparecimento dos primeiros casos de Covid-19 há precisamente um ano.

A psiquiatra sublinhou que, neste momento, na saúde mental existem basicamente “três grandes fatores a contribuir para o aumento dos pedidos para seguimento em consulta”. Um deles são os doentes que já tinham patologia psiquiátrica e que estavam estabilizados e que agora se nota de novo uma exacerbação de sintomas de novo.

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“Estavam bastante estabilizados, apesar de já terem um diagnóstico prévio, e agora voltam a ter um agravamento de sintomas ansiosos e depressivos ou de insónia”, disse, adiantando que também há doentes que estão em seguimento e em que se nota um maior agravamento de sintomas de ansiedade.

A pessoa acaba por vir na mesma às consultas, mas nota-se uma exacerbação da sua patologia de base que já estava em tratamento e que, muitas vezes, dificulta a nossa capacidade de intervenção porque vão ser doentes que necessitam de um prolongamento do tempo em consulta de cuidados mais intensos do que seria desejável, ou suposto, sem ser numa situação de pandemia”, explicou Joana Teixeira.

Depois também há os doentes que não tinham patologia psiquiátrica e que “agora, em consequência do confinamento da pandemia e desta situação de maior pressão a nível familiar laboral e cultural, acabam por precisar de acompanhamento”.

A maior procura agora registada também se deve aos médicos de família estarem a referenciar mais doentes para o Hospital Júlio de Matos, “muitos deles classificados como urgentes”, disse a psiquiatra, explicando que a diminuição da referenciação também se deveu a uma “menor procura dos serviços dos cuidados de saúde primários pelos doentes” por motivos relacionados com patologias psiquiátricas. “A maior parte deles está na prioridade normal, mas já se começam a ver alguns realmente com prioridade urgente para dar uma resposta mais rápida”, salientou Joana Teixeira.

Relativamente ao internamento, afirmou que são doentes mais graves: “os doentes crónicos com patologia mental grave, muitas vezes, descompensam com o confinamento, com a falta de apoio que, se calhar, teriam noutra situação normal sem ser de pandemia”.

“Este isolamento favorece até a má adesão à terapêutica em alguns casos e, portanto, isso faz com que haja descompensações mais graves da doença mental grave”, disse, acrescentando que os internamentos não serão em maior número, mas os doentes estão com “patologia mais exacerbada, mais grave do que numa situação normal”.

A procura de ajuda por problemas de dependências aumentou

Também a procura de ajuda por problemas de dependências de álcool, de jogo e de Internet está a aumentar no Hospital Júlio de Matos, mas a capacidade de resposta é menor devido às restrições de isolamento.

“A nossa capacidade de resposta em pandemia [de Covid-19] para este tipo de doente é menor, apesar de a procura ter aumentado”, disse Joana Teixeira. Segundo a psiquiatra, têm-se verificado que doentes que estavam estabilizados da dependência de álcool, por exemplo, estão a pedir mais consultas e mais internamentos por recaídas.

Covid-19. Saúde mental ficou ainda mais fragilizada devido à pandemia

Com a pandemia há um aumento de casos de dependência de álcool, jogo e internet, mas “a capacidade de resposta dos serviços está limitada, porque o tratamento é muitas vezes em grupo e foi necessário cancelar os grupos pelas questões da pandemia e o internamento também está limitado”, explicou na entrevista, a propósito de um ano da chegada da Covid-19 a Portugal, assinalado. A médica psiquiatra explicou que o centro hospitalar está a internar um número menor de doentes com dependências do que antes da pandemia pelas restrições do isolamento inicial e da própria estrutura do hospital.

O isolamento imposto pela pandemia também está a afetar os jovens, como demonstrou um estudo no hospital realizado no ano passado que revelou um aumento de sintomas de ansiedade, depressão e insónia nos jovens acima dos 18 anos universitários e também na população desempregada, disse, ressalvando que são estudos da comunidade.

Para Joana Teixeira, as universidades devem ter capacidade de oferecer apoio psicológico: “Vão ter que estar bastante mais alertas para o aparecimento deste tipo de patologia nos jovens e oferecer o encaminhamento para os serviços especializados ou, pelo menos, divulgar os meios de apoio onde os estudantes poderão recorrer caso necessitem”.

A médica psiquiatra acredita que, com o fim da pandemia, haverá “um aumento da procura dos serviços de saúde mental, não só pelas perturbações mentais comuns, mas também pelas próprias dependências”. As pessoas vão recorrer aos serviços para procurar apoio e ajuda que necessitam para fazer o tratamento das suas patologias, nomeadamente muitos doentes que tiveram infeção por Covid-19, mesmo que tenham sido infeções ligeiras.

“Nos três meses após a infeção, estas pessoas manifestam perturbações mentais e isto é uma preocupação muito grande”, porque vão juntar-se aos doentes psiquiátricos que o hospital já segue normalmente e aos que estavam compensados e que vão eventualmente descompensar das suas patologias, sobretudo, da linha ansiosa e depressiva.

“Além disso, ainda temos os doentes de novo da população em geral que com o confinamento prolongado acabam também por manifestar perturbações mentais”, disse a médica psiquiatra, sublinhando que devido a toda esta situação vai claramente assistir-se ao aumento da procura dos serviços de saúde mental. Nesse sentido, Joana Teixeira, defendeu que “vai ter que haver uma reestruturação ou uma reorganização na saúde mental de forma a conseguir dar resposta, provavelmente, a este aumento que se vai verificar”.

“Vai ter que haver uma sensibilização muito grande para esta necessidade pós-pandemia de tratar da saúde mental. Se isso for tido em conta acredito que consigamos dar resposta, porque vai ser uma necessidade, as pessoas têm queixas, têm perturbações mentais e têm que ter acompanhamento, vão ter de ter o tratamento necessário”, sustentou a psiquiatra.

Júlio de Matos teve de reorganizar-se para responder à pandemia

O hospital teve de fazer uma “reorganização interna muito grande” para responder à pandemia, nomeadamente a criação de um pavilhão onde os doentes ficam cinco dias internados em isolamento antes de serem transferidos para a enfermaria.

Sobre a incerteza do que aí vinha tivemos que preparar muito rapidamente o hospital para responder a esta situação”, disse psiquiatra.

A primeira medida foi criar “um serviço tampão” por onde passam todos os doentes antes de serem internados em enfermaria com outros doentes. É um serviço onde ficam cinco dias em isolamento para termos a certeza de que não estão infetados com Covid-19, continuou a médica.

Segundo Joana Teixeira, houve cinco doentes que testaram positivo que se tivessem ido para uma enfermaria geral teria sido “muito complicado”. “Isto é uma novidade, a maior parte dos serviços de psiquiatria não consegue ter esta capacidade de resposta”, disse, salientando que, “graças a este tipo de organização”, o hospital não teve surtos nos serviços de internamento de agudos.

“Isto é claramente de louvar porque a maior parte dos serviços de psiquiatria geral não conseguiu dar uma resposta deste género” e o Júlio de Matos teve que dar muitas vezes retaguarda e resposta a doentes de serviços que estavam fechados ou impossibilitados de receber doentes devido a surtos, salientou.

Em termos de consultas, no hospital passou “quase tudo para teleconsultas” para evitar a deslocação das pessoas ao centro hospitalar, mas manteve sempre a prática clínica. A “dificuldade maior” terá sido dar resposta aos novos pedidos porque “é mais complicado” observar um novo doente por teleconsulta”, o que levou muitas vezes à realização de consultas presenciais.

A especialista afirmou que provavelmente, devido ao confinamento, as situações de ‘stress’ vão desencadear “um aumento do aparecimento de patologia mental”. “Não propriamente por ser uma crise pandémica, mas porque as situações de ‘stress’ favorecem o aparecimento e a manifestação de patologias para as quais a pessoa já tinha predisposição genética”, disse, explicando que qualquer doença mental resulta de uma combinação entre predisposição genética e fatores ambientais.

Se aos fatores ambientais juntarmos agora este fator de ‘stress’ que já dura há um ano é muito provável que possamos realmente assistir a uma maior manifestação desses sintomas e dessas patologias mais predispostos geneticamente para isso”, sustentou.