O Ministério da Saúde já teve acesso ao relatório do inquérito da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) que escalpeliza a “intervenção das entidades do Ministério da Saúde no surto ocorrido” num lar em Reguengos de Monsaraz — por outras palavras, a demora na resposta médica ao surto no lar e no transporte de infetados para unidades de saúde. A abertura de um inquérito tinha sido ordenada pela ministra da Saúde.

O relatório ilibará de responsabilidades significativas a Autoridade de Saúde Regional do Alentejo, o Hospital do Espírito Santo de Évora (aponta erros, mas refere que estes não implicaram “aumento de risco ou prejuízo para os utentes do Lar e/ou para terceiros) e a Autoridade de Saúde Local. Isto de acordo com um comunicado enviado pelo gabinete de Marta Temido.

O relatório, porém, não poupará Ordem dos Médicos e sindicatos — que questionaram a legalidade do envio de médicos para responder ao surto no lar, onde morreram 18 pessoas e ficaram infetadas 162.

O comunicado aponta que os profissionais de saúde locais “apesar de desde o início do surto no dia 18.6.2020 terem prestado cuidados médicos” aos utentes do lar, passaram a invocar a ilegalidade da obrigatoriedade dos serviços “no seguimento de instruções recebidas quer da Ordem dos Médicos quer do Sindicato Independente dos Médicos (SIM)”.

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Porém, “ao contrário das posições assumidas pela OM e pelo SIM”, o relatório da IGAS terá concluído que “as determinações de deslocação de profissionais de saúde” ao lar de Reguengos de Monsaraz onde existia um surto de Covid-19 “não padeceram de nenhuma ilegalidade ou outro vício jurídico”.

Pelo exposto, a Ministra da Saúde solicitou à IGAS a emissão e envio à entidade competente do relato de factos suscetíveis de responsabilidade deontológica por parte de membros de órgãos da Ordem dos Médicos e sindicatos envolvidos”, lê-se no comunicado.

A “entidade competente” será o Ministério Público, dado que o comunicado do ministério da Saúde aponta que “os documentos referentes a este processo serão remetidos ao Ministério Público da Comarca de Évora, onde decorre já um inquérito de natureza criminal sobre o mencionado surto, e ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, para conhecimento”.

As acusações à Ordem dos Médicos e a sindicatos

De acordo com o comunicado, o relatório sugere que uma conduta dos profissionais de saúde que divergisse do que foi decretado pelas autoridades — que “os sindicatos envolvidos” e a Ordem dos Médico contestavam — é que colidiria com “o princípio geral de colaboração” previsto no artigo 92º do Código Deontológico dos médicos.

Nesse artigo 92º, lê-se que “o médico deve, com pleno respeito pelos preceitos deontológicos, colaborar e apoiar as entidades prestadoras de cuidados de saúde”. O código deontológico impõe ainda aos médicos “prestar serviços profissionais em caso de epidemia, sem abandonar os seus doentes, sempre que tal lhe seja solicitado pelas autoridades de saúde”. Bem como “prestar serviços profissionais em caso de catástrofe, oferecendo os seus préstimos às autoridades e atuando em coordenação com elas” e “obedecer às determinações das autoridades de saúde, sem prejuízo do cumprimento das normas deontológicas”.

Segundo o ministério da Saúde, o relatório sugere que a Ordem dos Médicos e alguns dos sindicatos envolvidos sugeriram a profissionais que contornassem estas obrigações que o Código Deontológico impõe — e por isso o ministério da Saúde pede à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) que envie à “entidade competente” os factos “suscetíveis de responsabilidade deontológica” que vê imputados a “membros de órgãos da Ordem dos Médicos e sindicatos envolvidos”

O que diz o relatório das autoridades e administrações regionais:

De acordo com o ministério da Saúde, o relatório da IGAS conclui, sobre a gestão do caso pela Administração Regional de Saúde do Alentejo: “A conduta desta entidade e seus responsáveis pautou-se pela articulação com todas as entidades envolvidas, designadamente com os médicos e enfermeiros da USF Remo do ACES do Alentejo Central.”

Já sobre a Autoridade de Saúde Regional do Alentejo, o gabinete de Marta Temido diz que o relatório conclui que a eventual responsabilização “já se encontra prescrita”. E quanto à ação da Autoridade de Saúde Local, ler-se-á no relatório que “foram tomadas as medidas e facultados os meios que, enquanto ASL lhe competiam, não lhe sendo exigível outro comportamento face às circunstâncias existentes, à dimensão do surto e à sua própria condição pessoal”.

O que diz o relatório das responsabilidades do hospital:

Sobre as responsabilidades do Hospital do Espírito Santo de Évora no prolongamento do atraso no transporte de doentes infetados do lar de Reguengos, o relatório aponta que o hospital “circunscreveu-se à sua missão” na “gestão deste surto”, centrando-se apenas “na avaliação dos utentes”.

Segundo o relatório citado pelo ministério da Saúde, o facto do hospital se ter circunscrito à avaliação de doentes faz com que não tenha “cumprido escrupulosamente o acordado relativamente aos briefings diários de apoio”. Porém, o hospital será parcialmente ilibado: concluirá o documento (garante o ministério) que “a deficiente colaboração dos estabelecimentos hospitalares envolvidos não implicou aumento de risco ou prejuízo para os utentes do Lar e/ou para terceiros”.

O comunicado diz ainda que Marta Temido pediu à Administração Regional de Saúde do Alentejo uma “recomendação expressa de articulação entre os estabelecimentos hospitalares e os ACES [Agrupamento de Centros de Saúde] da sua área de abrangência, atenta a imperativa necessidade de um melhor trabalho em rede, em semelhantes circunstâncias futuras”.

O que diz o relatório dos Agrupamentos de Centros de Saúde:

Segundo o comunicado do ministério, a conduta dos profissionais de saúde intervenientes não foi merecedora de juízo de censura por parte da IGAS, tendo-se apurado que “todos cumpriram a escala em que foram colocados”.

A IGAS conclui pela inexistência de matéria para responsabilização disciplinar dos dirigentes e profissionais de saúde intervenientes”, garante o ministério.

Ordem vê o caso de forma diferente…

Bem diferente era o teor do relatório da comissão de inquérito da Ordem dos Médicos, que encontrou outros responsáveis: foi uma “estratégia poupadora de recursos hospitalares“, com o objetivo de reservar camas para “outros surtos que pudessem vir a ocorrer”, que levou a que os utentes infetados com Covid-19 do lar não fossem todos eles transportados para o hospital.

… e pede com urgência o inquérito

Contactada pela agência Lusa a propósito das conclusões da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), que admite “responsabilidade deontológica” dos médicos que recusaram visitar a instituição, a Ordem dos Médicos disse que apenas tomou conhecimento destas informações pelas notícias.

A Ordem dos Médicos tomou conhecimento das conclusões pelas notícias e não recebeu nenhuma informação por parte da IGAS ou do Ministério da Saúde. Vamos exigir com carácter de urgência o inquérito para que o possamos analisar”, respondeu.

O que falhou no lar de Reguengos? Tudo, diz o relatório da Ordem dos Médicos