Título: Atlas Suzanne Daveau
Organizadores: Duarte Belo e Madalena Vidigal
Editor: Museu da Paisagem
Design: Mariana do Vale
Páginas: 320, ilustradas
Preço: 21,80€

Sinal dos tempos, Geografia e geógrafos não são considerados no nosso país, como tanto merecem, e é também por isso que a bonita longevidade de Suzanne Daveau (96 anos neste dia 13 de julho) e o seu enorme sentido de serviço não são celebrados e dados a conhecer como deveriam — colocando-a, por exemplo, a par de certas figuras longevas das letras e artes —, muito embora se possa pensar que este infeliz estado das coisas pouco lhe importe, já que, com a sua “assumida timidez” e “carácter discreto” (p. 20), persiste discretamente entre nós qual jovial, saltitante e livre passarinho do campo com a graciosidade do seu acento francês — que nunca perdeu, desde que em 1965 se fixou em Portugal, vivendo e trabalhando com Orlando Ribeiro, seu marido, cuja obra protegeu e cuidou praticamente sozinha a partir de novembro de 1997. Em contraponto, nada tem de despicienda a homenagem que este livro — e a exposição na Biblioteca Nacional que lhe corresponde — lhe faz, em aproximação amorosa a um trajeto pessoal em que vida ao ar livre, ciência e fotografia se entrelaçam indistintamente. Folheei muitas vezes este “objecto de comunicação” (p. 26), deliciado com a sua lição editorial, pois está visual e tematicamente organizado com uma mestria poucas vezes alcançada entre nós.

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E ninguém poderá dizer ser tarefa fácil começar por escolher dum arquivo com 8500 imagens fotográficas as 301 que aqui representam a “inabalável curiosidade” de Suzanne Daveau “pela sabedoria humana que se revela a partir da terra” (p. 9), tal é a diversidade de instantâneos e motivos espalhados por dez países em quatro continentes, mas que a maior incidência biográfica fez concentrar em França, África do Norte e Portugal. Porém, a chave deste livro é-nos mostrada nas suas páginas finais, em que são recuperadas imagens fotográficas do avô de Suzanne Daveau, Léon Robert, em especial aquelas dos passeios a Chamonix, às florestas e aos grandes glaciares alpinos, toda uma tradição extra-peninsular — que manifestamente nos falta e ainda demoramos a criar e valorizar —, também muito familiar, de longas caminhadas a pé para observar e sentir a monumentalidade dos grandes espaços naturais e o “tempo lento” da sua evolução histórica. O fascínio por montanhas haveria de levar a parisiense Daveau a fazer, em 1957, o seu doutoramento sobre a geografia humana do Alto Jura, onde passara as primeiras férias pós o fim da guerra, replicando em 1945 o itinerário dos avós percorrido em 1906. Viagens nesse período à Escócia, Grécia, Toscânia, Floresta Negra alemã, Bretanha, Áustria e Pirenéus também são documentadas (pp. 10-11, 38, 82, 92, 133, 172-74), a par de algumas excursões interuniversitárias organizadas por professores do Institut de Géographie de Paris e outros. Suzanne e Orlando passeariam nos Alpes em 1964, um ano antes de se casarem em Lisboa (pp. 217-19, sobretudo p. 215), onde ela chegou — convém registar — como investigadora apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Para trás ficavam as paisagens e as gentes do Senegal, do Mali (inclusive os Dogon…), de Marrocos, da Mauritânia, da Costa do Marfim, da Serra Leoa, de Burkina Faso (Alto Volta até 1984) e do Gana, que o magistério na Universidade de Dakar, com expedições instrutivas, lhe permitiu conhecer e documentar fotograficamente, como os certamente inesquecíveis encontros com um casal de jovens pastores da Mauritânia, acompanhados por dois camelos carregados de bidões, em busca dum poço para levar água ao acampamento familiar (pp. 88-89), com um grupo de raparigas do Alto Volta de volta à sua aldeia carregando volumosos feixes de milho à cabeça (pp. 80-81), ou o navio Senegal encalhado numa praia da Costa do Marfim (p. 195). Em 1961, deparou-se com “os mais antigos fósseis conhecidos”, em rocha pré-câmbrica, no sudoeste da Mauritânia (p. 231). Em 1969, haveria de fotografar uma Welwiwtschia mirabilis perto de Porto Alexandre, creio que acompanhando Orlando Ribeiro na viagem de que resultaria o livro de 1981 A Colonização de Angola e o seu Fracasso (o que, todavia, não nos é dito), e muitos outros aspetos daquela então colónia portuguesa (v. fichas, pp. 153-54; e p. 97). Em 1973 Daveau fotografou em Moçambique provavelmente em idêntico contexto (v. pp. 155-56), depois de em 1961 ter estado na Ilha de Moçambique (p. 171).

É no elenco de 1600 fichas fotográficas criadas para o Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (“documentos científicos” (p. 135), com “decantação” nas pp. 136-59) que encontramos aquilo a que Duarte Belo e Madalena Vidigal chamam “imagens de pensamento, densas e intemporais”, pois “nos fazem refletir sobre o passado, sobre a forma como, humanos, estamos a transformar o território que habitamos” (p. 127). Dessa variedade nos dá boa nota este livro, por exemplo quando justapõe o campo preparado para a cultura do milho na planície maliana do Seno e socalcos recentes na Serra de Monchique (1954 e 1964, p. 47), a intrincada construção de Tavira e da mexicana Guanajuato (1961 e 1965, p. 83), ou a malha urbana de urbe no sul de França face à da mauritaniana Atar (1955 e 1967, pp. 191 e 192-93; tb. 180-81). Também os territórios que não habitámos nem alguma vez poderemos habitar, mas nos dão ampla mostra da diversidade geomorfológica e climática do planeta, nos são dados na magnífica sequência de imagens de dupla página do Mont Blanc visto de norte, de inselbergs de Nouadibou, Mauritânia — também escolhida para a capa —, do Black Canyon em Boulder, Estados Unidos da América, uma vez mais um majestoso glaciar alpino, e por fim um sistema dunal algures no sul da Mauritânia (pp. 204-13).

A sua lúcida perplexidade diante do atual tempo rápido de mudanças, em contraciclo a “uma cronologia relativamente estável” (p. 8) e ao tempo lento do passado demográfico, rural e pré-industrial — uma aceleração de cujos danos importa ter plena, rápida e ativa consciência —, também prepassa em registos ocasionais da extrema densificação urbana que delapida espaços naturais de inimaginável beleza e originalidade, como o Rio de Janeiro e as suas favelas vistos em 1965 (agora está tudo muito pior ainda…) ou da mineração à superfície em larga escala, com efeitos devastadores, tal como fotografada no Chile (sem data, talvez anos 1960-70).

Não se pode folhear este livro sem ter em mente o Duarte Belo fotógrafo, reciprocamente comentado por Suzanne Daveau, e José Mattoso, num álbum de bondosa, memóravel e pró-ativa transgeracionalidade: O Sabor da Terra (2010), e cujo título poderia ter sido também O Saber da Terra. Ambos atentos ao “vórtice em que estamos a entrar” (p. 124), qualquer um deles poderia escrever, sobre o outro, que a sua fotografia, “ao mesmo tempo que regista um mundo à beira do seu fim, das transformações profundas a que assistimos em extensos territórios, é um ato de liberdade, uma forma de resistência e de luta pelo conhecimento” (Belo e Vidigal, p. 121). E isso faz da chamada e integração da obra fotográfica de Suzanne Daveau ao projeto Museu da Paisagem — que seguimos com curiosidade e gratidão — uma das boas notícias deste ano 2021…