Pelo menos duas vezes durante “Delhi Crime” (Netflix), de Richie Mehta, a luz vai abaixo por falta de pagamento no comissariado de polícia de Nova Deli. Para desespero da subcomissária Vartika Chaturvedi, que tem que ir pedir favores para que o fornecimento de eletricidade seja reposto rapidamente, porque já não há dinheiro no orçamento para mandar cantar um cego. A julgar por “Delhi Crime”, não é nada fácil ser polícia na Índia. Falta dinheiro para as coisas mais essenciais, os agentes são sobrecarregados com trabalho, ganham mal, têm que pagar as suas próprias despesas, quando andam de comboio vão em terceira classe e são incompreendidos pelos cidadãos, hostilizados pelos media e usados pelos políticos.

Uma das qualidades de “Delhi Crime”, que reconstitui, com acrescentos ficcionais, um crime hediondo que abalou esta cidade com 20 milhões de habitantes em 2012, é essa capacidade de, ao longo dos seus sete episódios, ir dando apontamentos da vida, do trabalho, da cultura, dos conflitos e das tensões humanas, sociais, geracionais e políticas da cidade em si, e do imenso e complexo país que é a Índia, sem que isso pareça forçado ou deslocado do enredo. Pelo contrário, decorre naturalmente do seu desenvolvimento e contribui para transmitir o sentido do local, do modo de vida e das mentalidades, tal como da existência na imensa, sobrelotada e caótica Nova Deli.

[Veja o “trailer” de “Delhi Crime”:]

A série abre com a descoberta, uma noite, pela polícia, dos corpos nus de um jovem casal numa valeta. O rapaz foi espancado, a rapariga agredida e violada de forma monstruosa, e depois foram atirados para a berma da estrada. Ele está vivo, ela está por um fio e o crime deu-se dentro de um dos milhares de autocarros particulares que cruzam Nova Deli. A partir daí, desenvolve-se a investigação da polícia e é lançada uma caça aos seis suspeitos, por uma equipa formada e liderada pela veterana subcomissária Chaturvedi, e que inclui desde agentes experientíssimos a novatos. Entretanto, opinião pública, media e políticos começam a agitar-se e a pôr a polícia nas suas miras, e o tempo a correr contra os investigadores.

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[Veja uma entrevista com o realizador e três dos principais intérpretes:]

Intensa, envolvente, ritmada e legível, “Delhi Crime” funciona com robustez e coesão no formato narrativo do policial de investigação e cumpre com as suas convenções, aqui no contexto das realidades da sociedade indiana (bem encaixados na história e sem viés comicieiro, encontramos temas como a violência sobre as mulheres e os direitos das vítimas, a tradição dos casamentos arranjados, o desencanto das novas gerações com os problemas crónicos do país, o funcionamento do sistema judicial ou as deficientes condições de trabalho da polícia); e apresenta um conjunto de personagens bem desenhadas e definidas, das de primeiro plano às secundárias, interpretadas por um elenco homogéneo de cima a baixo.

Além de espelhar a capacidade de produção e o profissionalismo consumado da indústria audiovisual indiana, “Delhi Crime” tem ainda dois aspetos bastante curiosos. Por um lado, a enorme hostilidade demonstrada para com a comunicação social, especialmente a televisão; e pelo outro, o apoio à pena de morte, em especial quando estão em jogo crimes como o que recria. A certa altura, a médica do hospital que está a tratar a rapariga violada diz à comissária que embora não seja adepta de tais práticas, espera que “os culpados sejam todos enforcados”. E veja-se o extraordinário plano com que Richie Metha fecha o último episódio desta série, que ombreia sem complexos com o melhor que se faz no género nos EUA ou em Inglaterra, e já tem uma segunda temporada prometida.  

“Delhi Crime” está disponível na Netflix.